terça-feira, 30 de março de 2010

A Constante Duzial ou de como andamos a ensinar física e química ao contrário


Leandro Ribeiro, professor de Ciências Físico-Químicas no Porto, enviou-nos, a nosso pedido, para publicação este interessante texto que tem circulado entre vários professores da disciplina. Apesar de ter algum conteúdo técnico (constante de Avogadro e reacções químicas), ilustra para proveito de mais gente o estado do nosso ensino das ciências: gostamos de complicar o que é simples!

Prólogo

Expliquei o seguinte à turma:

Uma expressão sobejamente conhecida e estudada já no 1º ciclo de escolaridade, é a do cálculo duzial. Para conhecermos o número total de elementos num determinado número de conjuntos duziais, recorremos à constante duzial através da equação: N_e = n Q_d, onde N_e é o número de elementos, n o número de conjuntos duziais e Q_d a constante duzial, cujo valor é exactamente 12. Assim, em 5,25 conjuntos duziais, facilmente se determina que existem 63 elementos no total.

Já para determinarmos a massa total de um dado número de conjuntos duziais, recorremos à massa duzial (M_d). A massa duzial trata-se da massa de exactamente um conjunto duzial e depende da natureza dos elementos que estamos a considerar. No entanto, conhecendo a massa duzial de, por exemplo, ovos de galinha, é fácil relacioná-la com a massa total através da expressão: n= m M_d.

A dada altura, um aluno, de semblante pesado, confessou:

Não me lembro de alguma vez ter aprendido essas expressões.

Ponto 1

Perguntássemos a um conjunto de alunos do 12.º ano de escolaridade se saberiam dizer como calcular a massa total de 8 dúzias de laranjas*, e provavelmente nenhum teria dificuldade em perceber que necessitaria de saber a massa de uma dúzia, a qual rapidamente multiplicaria por 8, chegando assim à resposta. Pedíssemos a seguir que determinassem quantas dúzias seriam necessárias para obter 230 kg de laranjas, e veríamos que, salvo algumas certas excepções, não teriam muito maiores dificuldades em dar resposta à questão. Perguntássemos, por fim, o que mudariam na resolução do problema caso estivéssemos a falar de ovos, e certamente responderiam, com o sorriso matreiro de quem se sabe perante um problema absurdo de tão fácil, que só mudaria a massa de cada dúzia.

Mudemos dúzias para moles, massa de uma dúzia para massa molar, 12 para 6,022 x 10^23, laranjas e ovos para dióxido de carbono e água; temos agora o caos. Baralham operações matemáticas, encontram dificuldades quando se muda a espécie química, procuram resolver o problema através de fórmulas e mais fórmulas, transformam-se em perfeitos trapalhões.

Ponto 2

A experiência seguinte foi realizada sem grupo de controlo, não tem qualquer significância estatística, não foi calculado um t de student nem recorri ao SPSS para analisar os dados: mas mesmo assim atrevo-me a partilhá-la convosco.

O primeiro conjunto de alunos encontrava-se no 9.º ano. Pouco mais sabiam que acertar equações de reacções químicas e eram perfeitamente ignorantes do significado do termo mole – ou seja, perfeitos para a desejada experiência. Conversei um pouco com eles sobre os estados físicos da matéria e sobre a relação entre o volume ocupado por uma determinada substância e as dimensões de cada elemento (átomo, molécula ou ião) da mesma. Chegados ao estado gasoso, facilmente concluíram que o volume ocupado por uma determinada quantidade de elementos depende muito pouco das dimensões de cada elemento, visto as distâncias que os separam serem muito superiores a esse valor. Assim, se tivermos a mesma quantidade de moléculas de duas quaisquer substâncias no estado gasoso, nas mesmas condições de pressão e temperatura, é muito provável que ocupem o mesmo volume. Posto isto, apresentei a equação que traduz a síntese do amoníaco através da reacção de azoto e hidrogénio gasosos: N_2 (g) + 3 H_2 (g) → 2 NH_3 (g).

Perguntei-lhes se me saberiam dizer qual seria o volume de amoníaco produzido a partir de 15 L de azoto gasoso, na presença de hidrogénio em excesso e numa situação em que a reacção seja completa e com um rendimento de 100%, em condições de pressão e temperatura constantes. Sem sequer rabiscar uma linha nos cadernos, e seria capaz de jurar que quase em uníssono, responderam-me 30 L.

Repeti a exposição numa turma do 12.º, ou seja, alunos que já tinham passado pela provação da quantidade de substância, da constante de Avogadro, da massa molar e do volume molar. Repeti o problema da síntese de amoníaco. Imediatamente uma voz ergueu-se com a questão:

–São condições PTN?

Respondi “podem ser”, só pela piada. Praticamente todos os alunos, incluindo os alunos com boa nota à disciplina, atacaram o problema calculando a quantidade de azoto, recorrendo “àquela equação, n = V/V_m – Pá, qual é o volume molar? Vinte e dois vírgula quatro litros por mole”, determinando a quantidade de amoníaco formado e, finalmente, convertendo este último valor num volume, recorrendo novamente à expressão do volume molar.

Um aluno desta última turma, depois de se aperceber do que tinha feito, comentou:

–Sabemos coisas a mais.

Epílogo

Estou aqui a olhar para os destaques num manual do 11.º ano:
n= m / M
n= V / V_ m
N= n / N_A
N_A = 6,022 x10^23 mol⁻¹

Somos tão bons, mas mesmo tão bons a ensinar isto, que conseguimos aniquilar quase completamente a capacidade dos nossos alunos de perceberem que não andamos a fazer mais do que a brincar às dúzias. Daqui resulta o medo da disciplina (é confusa, é complicada, tem muitas equações, é difícil, não percebo, não percebo, não percebo...); daqui resulta a dificuldade em compreender os fenómenos; daqui resulta que estudem decorando equações e mais equações e situações onde as mesmas se aplicam. Ninguém ensina a dúzia com a constante duzial, mas nós por cá andamos a fazê-lo, temos andado às avessas, ensinamos ao contrário, obscurecemos, obrigamos a lobrigar quando o que se pretende da ciência é que seja tão clara e distinta quanto a realidade o permita.

Mas não me interpretem mal: claro que é importante discutir com os alunos por que tem a constante de Avogadro o valor que tem e não outro; claro que é importante salientar a importância da sistematização de conceitos em ciência; claro que é importante trabalhar matematicamente relações de proporcionalidade. Tudo isto é importante: mas, nesta área, é igualmente importante que estas discussões surjam quando os alunos já estão confortáveis com os fenómenos, quando os alunos já compreendem as convenções – ou, melhor ainda, quando os alunos já sentem as convenções como necessárias, quase como se fossem suas. Ensinar ao contrário só vai dar asneira, e depois lá vamos nós dizer que os nossos alunos não estudam – o que não deixa de ser verdade, mas estes sintomas, vão-me desculpar, são maior indício do tipo de ensino que do tipo de estudo.

Vamos lá repensar seriamente a constante duzial.

* Assumam, se não vos for muito penoso, que se trata de laranjas perfeitamente calibradas, isto é, laranjas tais cujas diferenças de massa de unidade para unidade não resultam em variações significativas na massa de uma dúzia.

Leandro Ribeiro
leandroribeiro@gmail.com

3 comentários:

Grunho disse...

Eheheh!
Esta deu-me vontade de rir.
(Se calhar devia chorar)

Anónimo disse...

Acho que há um empolamento desnecessário desta situação.

Dar a resposta que o professor quer ouvir não é, por si só, bom indicador.

Os alunos ao progredirem na sua formação ficam conceptualmente mais sofisticados e, por vezes, conceitos que foram introduzidos de forma sobre-simplificada, não tão abrangente, e despida de pormenores conceptualmente relevantes, como ocorre no ensino mais básico, demoram mais tempo a ser recuperados à luz de uma visão mais realista que já possuem num ensino mais avançado.

É como estudar a dinâmica dos corpos recorrendo a uma visão Newtoniana (forças, acção-reacção), como se faz no ensino regular, ou usar a bagagem conceptual do cálculo variacional (Lagrangeanos) como se faz no ensino superior. Enquanto a primera é 'boa' para problemas simples, o cálculo variacional (com a utilização explícita ou não de multiplicadores de Lagrange) é que permite atacar problemas mais difíceis e mais realistas.



No caso presente, parece-me evidente que os alunos percebem que a equação química traduz um balanço entre quantidades de matéria e que a relação entre a quantidade de um dado tipo X de matéria e o seu volume não é, à partida, independente de X.

Quando se lida com gases ideais é que entra a simplificação. Depois, dependerá do aluno perceber que há uma relação universal entre a quantidade de matéria de qualquer tipo e o seu volume de gás ideal.

Como se diz, isto é uma boa aproximação para os gases ditos ideais. E mesmo para os não-ideais também tenho ideia de ser uma boa aproximação de primeira ordem.

Anónimo disse...

Gostei de ver um artigo deste tipo: penso até que o conteúdo técnico contribui para se aprender com ele. Se alguns dos artigos abordassem os temas com assuntos técnicos incluídos, a meu ver e para mim, melhor seria.

Concordo que o conhecimento científico só se adquire verdadeiramente reanalisando, num quadro mais aprofundado, o que já foi aprendido. Não é juntar ao que já se sabe, é, por vezes, compreender com maior profundidade o que já foi antes aprendido.

Mas não é a decorar equações (não percebidas?) ou a aprender «a constante duzial» que se entende verdadeiramente seja o que for. Assim só se aprenderão Tópicos de Ciências Físico-Químicas, mas não Ciências Físico-Químicas!

Américo Tavares

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...