domingo, 8 de abril de 2018

"Quarenta anos de investigação" de Claudina Rodrigues-Pousada


Em Portugal são raros os livros de memórias de cientistas, em particular os da geração que se reformou recentemente ou se vai reformar em breve que contribuiu para o grande crescimento da ciência após 25 de Abril de 1974, o dia da Revolução dos  Cravos, e, de forma mais nítida, após 12 de Junho de 1986, quando Portugal entrou na  União Europeia (então Comunidade Económica Europeia). Foi também por isso que li com agrado o livro Quarenta anos de investigação. Na voragem do tempo, escrito pela bióloga Claudina Amélia M. Rodrigues Pousada e publicada pela editora Húmus em 2017.

Ao contrário do que o título sugere, o livro não é apenas o relatório científico de uma carreira longa (um resumo em inglês está aqui), embora os seus principais marcos estejam aí bem apresentados. É também e principalmente a história da sua vida. Desde o seu nascimento em 1941 em Tadim, no Minho, de uma família modesta, até ao seu grupo actual de trabalho em biologia molecular (stress celular) no ITQB em Oeiras, a sua trajectória inclui a frequência do liceu de Guimarães, a  licenciatura em Farmácia pela Universidade do Porto (concluída em 1968) após uma fugaz frequência do curso de Matemática, o seu subsequente  estágio  no Centro de Biologia do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), o seu trabalho de doutoramento no Institut de Biologie Physico-Chimique de Paris, sob a supervisão do irlandês Donal Hayes, com uma tese de  doutoramento de Estado defendida em 1980 (tese de 3.º ciclo concluída em 1976), o lugar de investigadora do IGC onde pôde montar o seu próprio grupo em Portugal, a agregação em 1983 no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (IBAS), no Porto, onde deu aulas a tempo parcial, e desde 2000 a sua transferência para o ITQB convidado por António Xavier, após ter saído do IGC com a reestruturação elevada a cabo por António Coutinho (que, depreende-se do que é escrito, não a tratou muito bem).

Os seus resultados científicos traduzem-se em mais de uma centena de artigos publicados em revistas internacionais, o doutoramento de 30 estudantes, a organização de vários congressos internacionais na área da especialidade e a recepção de vários prémios e distinções. tanto nacionais como internacionais, incluindo o título de Fellow da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) e o diploma de honra da Federação Europeia das Sociedades de Bioquímica (FESB). Entre os cientistas portugueses com quem contactou devem ser mencionados Francisco Carvalho Guerra, Nicolau van Uden, Luís Archer, Corino de Andrade, Ruy Pinto, Aurélio e Alexandre Quintanilha, Arsélio Pato de Carvalho, para além de António Coutinho e António Xavier (que hoje dá nome ao ITQB). Fica claro o papel de IGC na recepção em Portugal da moderna biologia experimental, muito antes de Coutinho lá ter chegado. No estrangeiro Claudina Rodrigues-Pousada contactou com François Gros, um dos grandes nomes da biologia molecular francesa, para além de contactos mais esporádicos com alguns dos Prémios Nobel que ajudaram a erguer aquele ramo da ciência, tais como Francis Crick e Jacques Monod.

Alguma das histórias que conta neste livro ajudarão decerto a fazer a história da ciência em Portugal, em particular a história do IGC, do ITQB e do ICBAB. As histórias pessoais são particularmente interessantes, pois um cientista é um ser humano, é sempre ele e a sua circunstância. Em particular, o leitor ficará emocionado com a separação a que se viu obrigada dos três filhos (dois gémeos de 4 anos e outro de oito anos) quando, determinada, foi iniciar estudos de doutoramento sozinha para Paris. E ficará também tocado pelo relato de uma doença grave do que padeceu. O ambiente do laboratório, o desastre que foi a cheia em Oeiras que destruiu parte do IGC, os triunfos que foram cada artigo que contribuía com um progresso relevante e cada tese de doutoramento,  as opiniões sobre o trabalho dos seus discípulos  prendem também o leitor, ainda que ele não perceba muito de biologia molecular, Ficará a perceber quão difícil foi trabalhar num tempo em que os meios ainda eram rudimentares à medida que a ciência crescia no nosso país. Pormenores mais desagradáveis, quer pessoais quer profissionais, são inteligentemente calados. Mas a autora não se inibe de desvendar a sua simpatia política (foi tradutora para francês de Álvaro Cunhal) e de contar como, em compreensível alvoroço, viveu em Paris o 25 de Abril de 197. Os seus hobbys são também descritos de modo a dar-nos um retrato de corpo inteiro.

O livro, bem organizado, está escrito de uma forma muito simples e, portanto, clara. Tem anexos, uma bibliografia cuidada e um glossário que ajuda a compreender alguns termos técnicos. E tem fotografias a  preto e branco e a cores, em extratexto, que nos dão a conhecer visualmente os principais protagonistas, a começar os avós e a acabar no lazer com amigos quase na actualidade.

Dou os parabéns à Doutora Claudina Rodrigues-Pousada pelo seu livro. Fazem falta outros livros como este, escritos na primeira pessoa, que nos mostrem como foi a ciência  em Portugal, designadamente o seu crescimento no pós 25 de Abril  a partir do esforço pioneiro de alguns "estrangeirados". A moderna biologia molecular desenvolveu-se em Portugal, principalmente em Lisboa, Porto e Coimbra, porque houve quem a semeasse e a regasse.

Sem comentários:

A ARTE DE INSISTIR

Quando se pensa nisso o tempo todo, alguma descoberta se consegue. Que uma ideia venha ao engodo e o espírito desassossegue, nela se co...