terça-feira, 27 de março de 2018

MEU PREFÁCIO A "POÇÕES E PAIXÕES. QUÍMICA E ÓPERA", DE JOÂO PAULO ANDRÈ



Em exclusivo aqui o meu prefácio a um livro sensacional que acaba de ser publicado na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva:

A ÓPERA E A QUÍMICA: DUAS FITAS DE UMA SÓ HÉLICE

Sendo a arte mais antiga que a ciência, as ligações entre arte e ciência são tão antigas quanto a ciência. A moderna ciência, nascida com a Revolução Científica nos séculos XVI e XVII, apareceu logo em palco nessa época, surgindo os cientistas ou proto-cientistas como personagens por vezes admirados e noutras vezes amaldiçoados. A Trágica História da Vida e Morte do Doutor Fausto, do dramaturgo inglês Christopher Marlowe, cuja première ocorreu em Londres cerca de 1592, conta a história de um alquimista alemão que aspira ao saber absoluto e, portanto, ao poder absoluto e que, para alcançar os seus fins, assina, com a tinta do seu próprio sangue, um pacto com o demónio, no qual se compromete a entregar-lhe não só o corpo como a alma. O demónio oferece-lhe em troca um livro que lhe permite, entre outras coisas, obter ouro, o elemento químico que está desde a mais remota antiguidade associado à riqueza. O final desta tragédia, mais tarde retomadoa por Goethe e por vários outros autores, é bem conhecido: o Doutor Fausto, apesar do seu arrependimento, acaba nas chamas do Inferno. A moral é que há um preço a pagar pela hubris humana. Estávamos num tempo, antes da química científica (que só surgiria, com o francês Antoine-Laurent Lavoisier, no final do século XVIII), mas no qual despontava um novo método de aquisição do saber, num processo que passaria pelo italiano Galileu Galilei, na física, e pelo inglês William Harvey, na medicina. Começou nesse tempo a ser claro que saber significava também poder. No então vasto império português, uma ligação entre arte e ciência tinha ficado patente três décadas antes, em 1563, quando o médico Garcia da Orta, o autor dos Colóquios dos Simples (uma obra de botânica pioneira à escala global), pediu ao seu amigo Luís de Camões para escrever alguns versos introdutórios. Ciência e arte estão desde há muito entrelaçadas.

O Doutor Fausto conheceu numerosas versões operáticas, das quais a mais famosa é talvez a que foi composta pelo francês Charles Gounod e estreada em Paris em 1859. Mas a primeira ópera data precisamente do tempo do primeiro Fausto. Conforme o químico João Paulo André lembra no preâmbulo deste seu livro, essa ópera é Dafne, uma peça musical representada em Florença em 1597. O autor da música foi o compositor e cantor italiano Jacopo Peri, em colaboração com Jacopo Corsi, tendo o libreto sido escrito por um outro italiano, o poeta Ottavio Rinuccini. O espectáculo é hoje irrepetível, pois da música original só restam alguns fragmentos. O ideário do grupo Camerata Fiorentina, onde aqueles nomes pontificavam, consistia em revitalizar a antiga tragédia grega, cantando o texto em vez de o recitar. O enredo, como é contado neste livro, baseia-se num dos mitos da Antiguidade Clássica: Apolo, o mais belo deus do Olimpo, apaixona-se perdidamente pela ninfa Dafne após ter sido atingido por uma flecha de Cupido que continha ouro na ponta. Mas, querendo trocar as voltas a Apolo, Cupido atinge também Dafne com uma flecha com chumbo, um metal vil, que vai provocar nela a rejeição do continuado assédio. Perseguida na floresta, Dafne, desesperada, acaba por pedir ajuda ao seu pai, um deus que a transforma num loureiro (o momento mágico da transformação foi fixado em mármore por Gian Lorenzo Bernini). E Apolo, para trazer o seu amor perenemente consigo, passa a usar uma coroa de louros na cabeça. A ópera Dafne haveria de dar origem a outras sobre o mesmo tema, por exemplo, a primeira ópera em língua alemã, estreada em Torgau em 1627, da autoria, respectivamente música e texto, de Heinrich Schütz e Martin Opitz.

Estando dois elementos químicos presentes em Dafne, podemos dizer que a química está na ópera logo desde o seu berço. E continuou nela ao longo da história desse género musical que chega em expansão crescente até aos dias de hoje, conforme o químico João Paulo André, tão claramente mostra com abundantes exemplos. Ele atinge os nossos cérebros com uma “flecha de ouro, que nos deixa interessados pelo tema. O autor enfatiza não só o papel na ópera de substâncias químicas simples, como os metais, mas também o de substâncias mais complexas como as poções, as quais possuem invulgares virtudes transformadoras: eram substâncias procuradas pelos alquimistas, que se nalguns casos eram remédios milagreiros noutros se revelavam rapidamente fatais. Na ópera Tristão e Isolda, do alemão Richard Wagner, estreada em Munique em 1865, dois amantes ingerem uma poção mágica. Na ópera Romeu e Julieta, de Charles Gounod, estreada em Paris em 1867, Julieta, tal como na tragédia homónima de Shakespeare, ingere uma bebida que a faz cair num estado cataléptico. Na ópera as poções têm ajudado ao início e ao fim de intensas paixões.

Falando de paixões de um ponto de vista mais actual, o autor lembra-nos os ensinamentos da moderna bioquímica: são afinal substâncias químicas que explicam a “química do amor”, o que torna a ligação entre ópera e química bastante mais profunda do que os exemplos anteriores já evidenciavam. Quando Goethe intitulou um dos seus romances “As Afinidades Electivas” pretendia associar as ligações que se fazem e desfazem entre seres humanos (ainda hoje se diz que entre duas pessoas há “uma boa química”) às ligações, omnipresentes na Natureza, entre substâncias químicas. Mas hoje sabemos que no nosso corpo existem hormonas, como a testosterona e a progesterona, associadas à sexualidade e neurotransmissores, como a β-feniletilamina, cujos níveis estão correlacionados com estados amorosos. Se o amor está praticamente por todo o lado na ópera, então poderemos dizer com toda a propriedade que o mesmo acontece com a química.

E as ligações entre química e ópera não se ficam por aqui. É curioso referir que o compositor  italiano Claudio Monteverdi, autor da primeira obra-prima operática, L’Orfeo (que se baseia no mito de Orfeu e Eurídice, outra história de malfadada paixão, onde desta vez entra um veneno), estreada em Mântua em 1627, era um entusiasta pela alquimia, a “Grande Obra”. Pouco depois da sua morte, um músico escreveu uns versos encomiásticos que dedicou ao “Gran Professor della Chimica”. Um grande elogio, embora decerto exagerado. Na história da ópera, houve porém um autor canónico que foi professor de Química numa escola superior, o russo Aleksandr Borodin, autor de Príncipe Igor, ópera estreada em São Petersburgo em 1890.

João Paulo André prodigaliza estas e outras associações, algumas porventura inesperadas para o leitor comum, que relacionam de uma forma assaz sedutora ópera e química, a “obra de arte total”, por combinar uma variedade de artes, e a “ciência do meio”, por estar no seio de outras ciências. Conduz-nos, ao longo de dez capítulos entre o preâmbulo e o epílogo, numa agradável viagem ao extraordinário mundo da química através do fio condutor da ópera que é, ao mesmo tempo, uma viagem ao encantatório mundo da ópera através do fio condutor da química. Química e ópera são, para ele, duas fitas da mesma hélice, numa bela metáfora em que invoca a molécula do ADN, a pedra angular de todas as manifestações de vida que conhecemos.

Os exemplos de óperas conhecidos com minúcia pelo autor que, de uma forma ou de outra, recorrem à química chegam até à actualidade. Por exemplo, Madame Curie, a famosa física e química polaco-francesa que foi a única cientista a ganhar dois prémios Nobel de duas disciplinas científicas, foi fonte de inspiração da ópera Madame Curie, estreada em Paris em 2011, no Ano Internacional da Química, que assinalava os cem anos do seu segundo Nobel. Foi sua autora a compositora polaca Elzbieta Sikora, num preito tanto à terra natal de Madame Curie como ao talento feminino. O físico de origem alemã Albert Einstein, que foi amigo e admirador de Madame Curie (e que, por isso, aparece na ópera atrás referida), foi também figura central de algumas óperas, nomeadamente Einstein on the Beach, dos americanos Robert Wilson e Philip Glass, estreada em Avignon em 1976.

Em 1959 o físico-químico e romancista inglês Charles P. Snow discutiu, numa famosa conferência que proferiu em Cambridge, o problema da separação entre duas culturas, a cultura literária (ou, mais em geral, a cultura artística) e a cultura científica. Deu como exemplo a obra do dramaturgo inglês William Shakespeare (um contemporâneo de Marlowe e de Galileu) e a Segunda Lei da Termodinâmica, o primeiro celebrado por todos os literatos e a segunda ignorada por eles com a mesma unanimidade. E, contudo, Shakespeare e a Segunda Lei estão mais ligados do que geralmente se pensa. O professor de Química americano A. Truman Schwartz escreveu: “A Segunda Lei parece conduzir as tragédias de Shakespeare: no Rei Lear é libertada uma entropia prodigiosa.” Se fosse mais conhecedor da cultura portuguesa, Snow poderia, para além de Shakespeare, ter referido Luís de Camões, que, antecedendo o bardo de Stratford-upon-Avon, escreveu que “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo o mundo é composto de mudança/ Tomando sempre novas qualidades,” que não é mais do que um enunciado poético da Segunda Lei da Termodinâmica.

Os tempos mudaram. Hoje, passado mais de meio século sobre a questão das duas culturas, é geralmente reconhecido que a ciência é um ramo da vasta cultura humana, tal como a arte é outro. Há só uma cultura, mas, se a virmos como uma longa hélice, poderemos falar de duas fitas unidas por travessões. O químico americano contemporâneo Carl Djerassi, um dos inventores da pílula anticoncepcional, ensaiou com a escrita de peças de teatro baseadas em temas de ciência a construção de pontes entre ciência e o teatro. Algo semelhante fez um outro químico americano, Roald Hoffmann, Prémio Nobel da Química de 1981, que escreveu poemas de temática científica para além de ter partilhado com Djerassi a autoria da peça Oxigénio, que conta a descoberta desse elemento. E, entre nós, Jorge Calado, que, sendo um professor de Química, é também um grande especialista em ópera. João Paulo André, professor de Química e entusiasta da ópera, tem a quem sair e sai-se muito bem neste seu primeiro livro. Com esta obra, ganha o estatuto de professor de Química e Ópera, um título exigente a que poucos poderão aspirar mesmo à escala mundial. Há muitos mestres de Química e, embora em menor número, não são poucas as pessoas que ensinam Ópera. Mas há poucos, muito poucos, mestres de Química e Ópera, sábios que consigam fascinar-nos com o entrelaçamento da ciência e da arte. O autor do livro que o leitor tem em mãos é um mestre das duas culturas que afinal são uma só.



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