sábado, 14 de outubro de 2017

BIBLIOTECAS


The proper study of mankind is books.
Aldous Huxley


Transcreve-se o oportuníssimo texto, publicado inicialmente no “Jornal de Letras”, da autoria do ensaísta e crítico literário Eugénio Lisboa, numa época em que a leitura das obras dos mais conceituados autores nacionais e estrangeiros merece pouca atenção da juventude portuguesa. Aliás, como já se lamentava Eça: “Hoje não se lê, folheia-se!”:

Sonhei, desde muito novo, com bibliotecas: as que pudesse visitar e as que eu próprio viesse a possuir. As paredes de uma sala, cobertas de estantes carregadas de livros, pareciam-me o suco da barbatana, em matéria de decoração. Adorava ler livros e adorava ter livros. Aí pelos meus quinze anos, tive finalmente a minha biblioteca, quando um generoso amigo e colega do meu pai me ofereceu um belo acervo de cerca de cem livros e uma pequena estante para lá os acomodar. Era pequena, mas boa: livros de ficção, de história, de filosofia, de teatro, de poesia… de ciência. Fiquei deliciado e não havia dia em que não lesse um pedacinho daquela excelente colecção. Os melhores escritores do mundo, ali, em concentrado! Depois, aquela pequena biblioteca foi crescendo, à medida que crescia o meu poder de compra. E foi também crescendo, em desproporção do meu poder ler tudo aquilo que comprava. Fui tendo, por assim dizer, uma biblioteca em expansão, como são todas as verdadeiras bibliotecas, e conheci, de caminho, várias bibliotecas públicas e privadas, em vários países.

As bibliotecas são, como se sabe, bons lugares para consulta, leitura e empréstimo de livros (e, hoje em dia, de livros em vários suportes, além de discos com música, DVDs, etc.) Mas as bibliotecas não servem apenas para o acto nobre de ler ou consultar: têm outras inesperadas serventias. Servem, por exemplo, para ali se fazer uma boa soneca: um bibliotecário da Universidade de Cambridge ia ao ponto de afirmar que acolhia com gosto os “leitores” que iam para lá dormir, porquanto, sublinhava ele, os leitores dorminhocos eram, para os livros, uma ameaça bem menor do que os leitores acordados. Por outro lado, um personagem do romance The Great Gatsby, do escritor americano Scott Fitzgerald, dizia: “Estive bêbedo durante cerca de uma semana e pensei que podia ficar sóbrio se me sentasse na biblioteca.” Isto é, as bibliotecas pareceriam ser óptimos veículos para a cura de bebedeiras de caixão à cova… Nada como uma boa ressaca no interior da British Library!

As bibliotecas existem há muito tempo, pensando-se que a primeira biblioteca de que há memória tenha sido uma colecção de tábuas de argila, na Babilónia do século XXI a. C. Pensa-se, também, por outro lado, que a primeira biblioteca privada foi a que pertenceu a Aristóteles, o qual possuía, além de muitos livros, nada menos do que treze escravos (se eu tivesse à minha disposição tanta “mão de obra”, conseguiria, por certo, arrumar melhor os meus livros…). Eurípedes e Platão tiveram também bastantes livros e diz-se que Marco António ofereceu de presente a Cleópatra uma biblioteca de 200 000 volumes, que tinha pertencido aos reis do Pérgamo. Oferecer a uma bem amada, como presente, uma biblioteca é, convenhamos, um acto deveras singular e digno de ser assinalado.

Diz-se que a primeira biblioteca pública existiu em Atenas devido a um acto de beneficência, em 540 a. C., do tirano Pisistratus. Cultura e tirania, de braço dado, é sensacional. Por outro lado, a mais antiga biblioteca pública que ainda hoje existe é a Biblioteca do Vaticano, fundada em 1450.

Uma das bibliotecas mais famosas do mundo foi a Biblioteca de Alexandria, fundada por Ptolomeu I, a qual chegou a conter 700 000 volumes. Foi destruída em duas arremetidas sucessivas: primeiro, com a invasão de Júlio César, em 470 a.C., e, depois, em 391, pelos árabes, que queimaram os livros para aquecerem os 4000 banhos públicos da cidade. A razão que deram para acto tão bárbaro foi que os livros eram perfeitamente inúteis, visto que tudo quanto era necessário saber estava no Corão.

Em Oxford, existe, ainda hoje, uma das maiores bibliotecas do mundo, a Bodleian, que deriva o seu nome do fundador, Sir Thomas Bodley (1545-1613), o qual dedicou vinte anos da sua vida a pô-la de pé. Está autorizada, por lei, a receber um exemplar de cada livro publicado no Reino Unido. Sei-o, até por experiência, porquanto recebi uma intimação, quando era conselheiro cultural na embaixada de Portugal, em Londres, no sentido de enviar um exemplar do catálogo de uma exposição que ali fizéramos… Os ingleses não dormem em serviço!

No capítulo de bibliotecas públicas, a Inglaterra é dos países mais avançados, uma verdadeira pioneira, neste domínio: no século XVIII, havia já, naquele país, centenas de bibliotecas de empréstimo de livros, sem falar nas famosas “coffee houses” que permitiam o acesso aos livros mais variados. Por outro lado, nas vésperas da Revolução Francesa, existiam, em Paris, dezasseis bibliotecas de grande dimensão e dezasseis cidades de província com, pelo menos, uma biblioteca, cada.

A maior biblioteca que há hoje no mundo é a famosa Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos. O núcleo inicial desta gigantesca “livraria” foi a aquisição, por compra, da biblioteca de Thomas Jefferson (6457 livros). Foi criada, em 1800, pelo Congresso, contendo hoje para cima de 70 milhões de unidades. Por lei, a Biblioteca deve receber dois exemplares de cada livro publicado nos Estados Unidos, Para se ter uma ideia de como esta grande biblioteca procura ser exaustiva, darei um exemplo de carácter mais pessoal. Há alguns anos atrás, tendo ido a Washington, para participar num colóquio, um colega meu, que também fora ao colóquio, deu um salto à Biblioteca do Congresso e, no regresso, ofereceu-me uma lista com o registo dos títulos de obras de minha autoria ali existentes: eram quase todas… Através das embaixadas e consulados americanos, a Biblioteca do Congresso procura adquirir, tanto quanto possível, o que se edita por todo o mundo.

Outras grandes bibliotecas existentes, hoje, são, por exemplo, a Biblioteca de Estado Lenine, a New York Public Library, a Biblioteca da Sorbonne, em Paris, a Bibliothèque Nationale de Paris, a Cambridge University Library, a British Museum Library, a Biblioteca Ambrosiana, em Milão, a Biblioteca Capitolare, em Verona, além das bibliotecas das universidades de Harvard, Yale, Princeton, Chicago, Praga, Bolonha e Heidelberg.

Mas houve bibliotecas muito estranhas como foi o caso da biblioteca que pertenceu ao Grão Vizir da Pérsia, Abdul Kassem Ismail (938-995), a qual consistia em 117 000 livros, arrumados alfabeticamente, nos dorsos de 400 camelos, que viajavam com o Vizir. Tratava-se portanto de uma precursora das bibliotecas itinerantes.

Quanto a bibliotecários, houve-os de todos os formatos. Alguns personagens, depois famosos por outras razões, começaram por ser bibliotecários, entre eles, Mao Tse.Tung e também o notório J. Edgar Hoover, depois director vitalício do FBI; Pio XI, antes de ser papa, trabalhou na Biblioteca do Vaticano. Outro bibliotecário foi Casanova, mas este foi-o no final da vida e não no começo ou meio.

Há, supõe-se, em todo o mundo, em bibliotecas públicas, para cima de quatro biliões de volumes. Uma lista da UNESCO, de 1974, punha no topo, a grande distância de todos os outros países, a então União Soviética, em número de bibliotecas e em número de livros. Seguiam-se, em segundo lugar, mas, repito, a grande distância, os Estados Unidos (com 1/4 do número de livros e 1/15 do número de bibliotecas). Depois, por ordem decrescente, vinham a Polónia, a Alemanha Ocidental (estávamos em 1974), o Japão, a Checoslováquia, a Alemanha Oriental, a Dinamarca, o Canadá, a Hungria e a Suécia.

Para terminar, um exemplo de biblioteca muito peculiar: uma biblioteca que é simultaneamente um bordel. Trata-se da Sala de Leitura (Reading Room), em St. Louis, no Missouri. Consiste – ou consistia: não sei se ainda persiste – numa sala de massagens, onde o leitor pagava 12 dólares por 20 minutos com uma hospedeira nua, que se limitava a ler literatura erótica ou pornográfica. O cliente podia fornecer, ele próprio, o material de leitura, inclusivamente, escrito por si.

(Nota: algum do material informativo aqui utilizado – mas não todo – fui buscá-lo a dois livros preciosos: 1) The Literary Life & Other Curiosities, de Robert Hendrickson, Penguin Books, London, 1982; Histoire du Livre, de Bruno Blasselle, Gallimard, Paris, 1997. O resto colhi-o algures ou na minha memória).

1 comentário:

Anónimo disse...

O professor

O professor disserta sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo.
Carlos Drummond de Andrade

Pé ante pé,
Fungicamente recuando,
O professor sai da sala e fecha a porta.
O holograma continua a dissertar
Sobre o ponto difícil do programa.
Com medo que o acordem,
O professor desce as escadas
E junta-se aos sonâmbulos da rua
Cansados das canseiras desta vida.
Quem vai sacudi-los?
Quem vai repreendê-los?
Não.

Fernanda Co(sta)

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