segunda-feira, 16 de maio de 2016

A NEGLIGÊNCIA NA LÍNGUA E NA ESCRITA SÃO O PRINCÍPIO DA DECADÊNCIA DUMA CULTURA E DUM PAÍS

Artigo de Guilherme Valente do Público de sexta-feira passada (com cujo teor me identifico):
"Patriotismo é o amor pela nossa Terra. Nacionalismo é o ódio à Terra dos outros"
Romain Gary

"É sempre um  défice de pátria que atiça o nacionalismo, nunca um excesso."
Pascal Bruckner


1. A escrita não é  «uma mera representação do idioma»*. Nem é uma arbitrariedade. Tem uma lógica, uma história, uma função, valor e importância inestimáveis.

A  gramática, a sua nomenclatura e terminologia também não podem ser o tricot com que os nossos linguistas  alteraram  recorrentemente os programas de Português.  Talvez  para 
fazerem passar por avanços de ciência o que na realidade não o é.
Mas a gramática e a sua nomenclatura  têm também uma lógica e uma história.

Do mesmo modo que  os Jerónimos ou a Batalha também  não são a construção de lego com que uma criança possa brincar, ou  mamarrachos que se possam  alterar  ou destruir à vontade. Nem a obra Os Maias pode ser trocada por uma versão  facilitista, idiota dela. De facilitismo em facilitismo, de simplificação em simplificação, é  inteligência que se atrofia e que matam.

A língua,  organismo vivo, enriquecível pela interacção inevitável das culturas, não deixa de ser por isso a herança matricial que é, que tem de ser cuidada, ensinada e amada - escola é, sempre,   a palavra-chave.

Por isso, a escrita, que reflecte essa natureza da língua, pode e deve ser actualizada. Mas  no seu tempo e com  critério, tocando-se  nela com precisão cirúrgica, sem ferir a sua lógica, sem  quebrar o fio agregador da sua origem e da sua história. Porque tal como todos os outros elementos que referi, tal  como a  História, é constitutiva e constituinte duma identidade humana, que é, na sua universalidade, singular. Porque tudo o que somos, pensamos ou fazemos é resultado duma cultura, isto é, "duma compreensão do mundo historicamente adquirida". Que devemos assumir e de nos devemos orgulhar.

2. Se  tivermos presentes  os inúmeros exemplos da aberração,  mais do que documentada, do  Acordo Ortográfico, estas rápidas considerações que fiz deviam bastar para se ter consciência da monstruosidade que foi fabricada, decidida e tão célere e surdamente imposta. 

Tão célere e surdamente que se impõe a pergunta metódica que deve ser colocada quando, entre nós, algo é decidido e imposto tão célere e surdamente: que interesses beneficiou este AO? 

Devo declarar que muito boa gente lutou por este AO por muito boas razões, sobretudo de política cultural e mesmo económica,  designadamente as relações, de vária natureza, com o Brasil, e a valorização da língua portuguesa  na comunidade internacional. Na minha opinião, contudo, que os factos confirmam, não era correcta a avaliação que fizeram.  E essas bem-intencionadas razões não deviam ter ignorado o  desiderato que acima formulei.

3. Na verdade, depois de tudo o que recorrentemente foi sendo  imposto na  Educação, este  AO era,  e continua a ser na escola, a bomba atómica que faltava. Que ainda faltava, depois da mediocratização dos  programas de Português, da liquidação da História e dos seus protagonistas, da ignorância das datas,   do desaparecimento   da  Geografia,  da  estigmatização da literatura, da desvalorização do conhecimento substantivo  e da cultura (colocaram a palavra entre aspas e estigmatizaram-na chamando-lhe "erudita"), depois da dissolução ou relativização de tudo o que nos torna Portugueses e, sem contradição, cidadãos do mundo. 

Cidadãos do mundo, porque amar  a nossa Terra não é incompatível, bem pelo contrário, com o sonho empolgante de podermos contribuir, com a oferta do que conseguirmos ser, da nossa diferença,  para o progresso de todas as nações,

Argumentou Henrique Monteiro que muitos milhares de  miúdos já aprenderam as novas regras. Diz isso  porque não tem reparado  como escrevem hoje os alunos e... muitos professores. E está a esquecer os milhões de portugueses que não as  aprenderam e nunca aprenderão.  E se muitos miúdos as  aprenderam,  estão na idade perfeita para aprenderem o que deve ser ensinado.

Um dos danos mais profundos e irreversíveis deste AO,   tal  como acontecera com as sucessivas alterações absolutamente gratuitas na nomenclatura e na terminologia da  gramática, foi separar os pais dos filhos,  foi impedir que os apoiassem  no estudo do Português. Como me aconteceu a mim há trinta e tal anos.


4.  Não há Nação sem língua, sem escrita, sem escola. Sem memória, sem História,   sem afectos. Que só o conhecimento pode gerar. Sem  herança  imaterial e material, que se ensine e se aprenda  a reconhecer, a compreender,  a valorizar criticamente, a continuar. A  amar. 

Não se «nasce»  português, ou francês, ou chinês, qualquer um de nós, ser biológico, poderia ter nascido num lugar qualquer. E seria desse lugar. É-se verdadeiramente português, mais português,  por se querer ser Português. Wenceslau de Moraes, por exemplo, escolheu ser  japonês, e foi tão japonês, mais japonês, seguramente, do que muitos japoneses.  Portugueses de Macau,  como eu os  conheci,  mesmo sem nunca terem vindo a Portugal, são mais portugueses do que  inúmeros cidadãos portugueses que aqui nasceram, cujos antepassados viveram desde sempre em Portugal..

Apagamento  da História que foi fazendo com que as gerações que começam hoje a chegar aos 50 anos vivam, na generalidade,  sem  dimensão do passado, por isso sem sentimento do futuro. Num eterno presente em que só o egoísmo pode dominar.

5. Atente-se na língua e na escrita que cada vez mais frequentemente se ouve e se lê, em que tantas vezes se diz e se escreve exactamente  o contrário  do que se queria transmitir, na comunicação social ou nas universidades. 

"A minha pátria é a língua portuguesa", escreveu Pessoa. Neste sentido parece estarmos a tornar-nos rapidamente apátridas. 

A negligência e a arbitrariedade com que se trata a língua e a escrita são o primeiro sinal da decadência de uma cultura e de uma  nação.

Mas tudo depende da inteligência e da vontade dos homens. Por isso  estou certo que Portugal será esse  País por tantos de tantas gerações sonhado. Por isso combati persistentemente contra as ideias e os actos que livre e convictamente  considerei adiarem esse desígnio,   bem ao alcance dos Portugueses, não tenho dúvidas. Para   que também nós, Portugueses,  participemos de novo no destino de conhecimento e solidariedade que tem de ser o destino do Homem.

Guilherme Valente

*Henrique Monteiro, Expresso, 7/5/16.

PS) Gosto muito  de me ver representado pelo actual PR. O  que não impede, naturalmente, que não subscreva a sua decisão de só intervir na questão do AO se este não obtiver a aprovação dos países que o não aprovaram.

2 comentários:

Cisfranco disse...

É inacreditável como um AO tão reles e sem base de sustentação foi subscrito por Portugal. Os pareceres técnicos que estiveram por detrás da aprovação política, não podiam ser piores. Havia pareceres contrários, mas não foram ouvidos/lidos. Os deputados que deram o aval político aos pareceres adeptos do acordo, não acharam nada estranho aprovarem um acordo tão estapafúrdio. Deram provas de desinteresse e desconhecimento da língua portuguesa, a não ser que se tenham submetido aos interesses económicos que o novo AO tem por detrás. O aborto que veio a ser produzido e posto em prática por lei, só suscita indignação. Isto de legislar, sem perceber nada do assunto e, mandar publicar, é péssimo. Oxalá que alguém venha a pôr mão nisto, porque ainda é tempo para isso. O PR é bem capaz de pegar no assunto. Espero que o faça.
Deixem a língua entregue aos estudiosos da mesma, saiam daí os políticos.

Anónimo disse...

O chorrilho de disparates deste texto é tão grande, que às vezes custa a crer que o homem que edita divulgação científica em Portugal seja o mesmo que escreve com tanta falta de rigor e de conhecimento sobre a língua. Que pobreza intelectual.

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

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