sexta-feira, 25 de abril de 2014

GRAVAR ZECA POR CIMA DE RAVEL


Texto de Galopim de Carvalho, de recordação e homenagem ao 25 de Abril:

Nesse tempo, há precisamente 40 anos, ainda conservava o hábito, que me ficara da juventude, de estudar até tarde, pela noite fora, com música de fundo num rádio-gravador portátil. Fora assim também em Paris, na preparação do doctorat en Sédimentologie e, mais tarde, em Lisboa, com a redacção da tese que me casou com a Universidade. Era o contrário do que faço agora, que acerto o horário pelo das galinhas, sendo na solidão e no sossego da madrugada que gosto de escrever. De igual entre esse tempo e o de agora, só a rádio com música de fundo.

Se fosse hoje, tinha sido dos primeiros a ouvir «Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas…», o comunicado do Movimento dos Capitães. Mas ouvi “E depois do Adeus”, pelo Paulo de Carvalho, por mero acaso, numa daquelas muitas rodagens do botão do condensador, em busca do tal fundo musical. Porque sempre apreciei a sua belíssima voz, detive-me a ouvi-lo, na íntegra, sem saber que estava atento à senha que “abriu Abril”. Mas não ouvi a “Grândola Vila Morena”, pois já sintonizara uma qualquer música a contento. Recordo-me que estava a escrever um texto que foi inserido no livro de homenagem ao professor Orlando Ribeiro. Fruto de um trabalho que me proporcionou um prazer imenso, nessa noite eu estava a redigir uma análise comparada das fisionomias da Terra e da Lua, desenvolvida a partir das respectivas situações e características planetárias, no contexto do Sistema Solar. E, como de costume nesse tempo, deitei-me tarde.

Dormia profundamente, quando a Isabel me acordou, excitada

 - Acorda! Parece que há um golpe militar. Telefonou-me agora uma aluna. Diz que há tropas a entrarem na cidade, mas que não sabe de que lado estão.

Instantes depois, preparava-me para pegar no telefone em busca de respostas, quando este voltou a tocar. Era um amigo.

- Liga a rádio! - exclamou, entusiasmado. – Desta vez é a valer! São dos nossos!

 - Tens a certeza? Não será uma golpaça dos ultras?

 - Não! Garanto-te que são dos nossos!

 E ele lá tinha as suas razões.

 Daí a momentos, ouvia-se a voz inconfundível do Luís Filipe Costa a ler o referido comunicado, aos microfones do Rádio Clube Português, logo seguida do inesquecível “On the waves”, que nos ficou como uma das marcas musicais mais profundamente gravadas dessa madrugada e dos dias de regozijo colectivo que se lhe seguiram, em festejo do fim do sufoco que foi a vida dos portugueses da minha geração.

 Sucediam-se os comunicados, intercalados por marchas militares e por aquelas cantigas, até então proibidas, do Zeca, do Mário Branco, do Luís Cília. Atento, eu ouvia e gravava, saltando de estação em estação. Como não tinha cassetes disponíveis, disse adeus ao Daphnis e Cloé, de Ravel, à Missa nº 1, de Bruchkner, e às Quatro Estações, de Vivaldi.

 Ainda conservo estas gravações e na primeira, cuja etiqueta não apaguei, em vez dos acordes melodiosos do poema sinfónico do compositor francês, ouvem-se as passadas firmes e cadenciadas do grupo coral alentejano a iniciar a libertadora “Grândola, Vila Morena”.

 Às nove horas saí de casa em busca de jornais e de convívio. As certezas da vitória avolumavam-se e a rua era uma romaria a crescer. Daí a pouco os cravos vermelhos floriam nas espingardas dos soldados, radiantes, fraternos e orgulhosos, e começava a ouvir-se «o povo, unido, jamais será vencido!». Recordo os risos, as lágrimas e os abraços dessa manhã radiosa.

Nesse dia eu deveria receber, das mãos do Reitor da Universidade, o meu diploma de doutoramento e o anel de pedra azul celeste (uma espinela sintética a fingir água-marinha), a cor de Ciências, com as insígnias da Universidade, um martelo, uma trilobite e um dinossáurio gravados no ouro. A cerimónia, como não podia deixar de ser, foi adiada. Em casa, frente à televisão e com o rádio-gravador ao alcance da mão, e cassetes novas que fora comprar, gravei tudo o que me foi possível, relatos, comunicados, declarações, músicas libertas da proibição, auxiliado pelo Nuno, que ainda não tinha sete anos mas já manejava, à perfeição, estes equipamentos. O Rui, a caminho dos cinco, fazia bases e naves espaciais no meio de um mar de peças de lego espalhadas no chão.

Galopim de Carvalho

(Texto retirado do livro do autor, “FORA DE PORTAS – Memórias e Reflexões”, Âncora Editora, Lisboa, 2008)

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