domingo, 2 de dezembro de 2012

Prefácio a "Utopias em Dói menor"


Meu prefácio ao livro "Utopias em Dói Menor", de Onésimo Teotónio Almeida e João Maurício Brás, que acaba de sair na Gradiva:

 Encontrei o Onésimo pela primeira vez num prefácio. Intitulava-se despretensiosamente «nota de introdução» e apareceu-me quando abri um livro que logo devorei: a edição em português, nesta mesma editora, de Surely You’re Joking, Mr. Feynman, saído nos Estados Unidos em 1985 e em Portugal escassos três anos mais tarde, como n.o 21 da colecção «Ciência Aberta». O prefaciador, ou «introdutor», doutorado em Filosofia e professor de História Cultural e Intelectual, na Universidade Brown, nos Estados Unidos, recomendava, com indisfarçável entusiasmo, a leitura do livro, que ele próprio tinha proposto ao editor português. Trata-se de um conjunto de divertidas histórias de vida, algumas verdadeiras anedotas, de um cientista singular, Richard Feynman, laureado com o Nobel da Física de 1965.

 Aquela «nota» foi para mim também uma boa introdução ao Onésimo. Um português de formação filosófica, estrangeirado, não tinha pejo em confessar a sua admiração por alguém que pensava claro e que não hesitava em dizer o que pensava. Mas o que mais impressionou o Onésimo foi a humanidade do génio extravagante. Ele podia ter a aura do Nobel, que é uma espécie de subida ao Olimpo, mas era humano e mostrava-o abundantemente nos seus ditos. Detestava a pomposidade, tão ao gosto do «intelectual europeu [...], sobretudo das letras e humanidades, que [...] chama ‘cultura’ a uma série de conhecimentos diletantes e superficiais sobre tudo ou quase tudo» (Onésimo dixit). Achei deveras curioso ver o Onésimo, um filósofo, entusiasmado com um físico que não escondia algum desprezo pela filosofia tal como ela era vulgarmente entendida. Foi afinal Feynman que escreveu em The Character of the Physical Law que os «filósofos estão sempre de fora a fazer comentários estúpidos». Mas, na introdução, o Onésimo recomendava também este livro do Feynman, que o editor Guilherme Valente me pediu logo para traduzir do inglês, o que fiz com o maior gosto, embora talvez sem fazer inteira justiça ao «estilo elegante» e à «simplicidade transparente» que o Onésimo tão bem assinalou no autor norte-americano (a edição portuguesa, intitulada O Que é Uma Lei Física?, saiu na Gradiva em 1989).

Passada uma década, voltei a encontrar o Onésimo num prefácio. Desta vez era ao livro do historiador de ciência norte-americano Steven Shapin, A Revolução Científica, saído na Difel em 1999. O prefácio chamava-se, no mesmo tom modesto, «nota de apresentação»,e começava com uma atitude feynmaniana: zurzia logo na ideia de prefácio. Escreveu o apresentador: «Acho a instituição do prefácio algo descabida, sobretudo quando se trata de apresentar um livro que propõe uma tese. Antecipar-lhe um comentário é injusto para o autor, que se esforçou por desenvolver a sua argumentação e naturalmente espera no mínimo ser lido antes das objecções dos críticos.» Ao ler esta obra, percebi que a ciência interessava ao Onésimo não só pelo lado da divulgação, e obviamente pela sua ligação à filosofia, mas também pelo lado da história, em particular da história pátria. Onésimo chamava a atenção para o valor dos vultos portugueses quinhentistas para a «recuperação da importância da experiência», que Shapin parecia ignorar. Uma excepção na comunidade dos historiadores de ciência era, para o Onésimo, o holandês Reijer Hooykaas, que deixou em inglês um estudo de fôlego sobre D. João de Castro, o vice-rei da Índia mas também o físico precursor dos estudos sobre magnetismo global, «Science in manueline style», enterrado no volume IV das Obras Completas de D. João de Castro, da responsabilidade de Armando Cortesão e Luís Albuquerque (Coimbra, 1981). Na altura não podia imaginar que um dia viria a ter o privilégio de dirigir a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e de ter nas mãos um dos volumes da obra maior de D. João de Castro, as Tábuas dos Roteiros da Índia. Só mais tarde, graças a convívio com fontes da história da ciência portuguesa, pude verificar a justeza da posição histórica do Onésimo, que, em textos em inglês, tem feito tudo para prestar justiça, no mundo anglo-saxónico, ao empirismo português que marcou a primeira globalização.

 Entretanto fui conhecendo um outro Onésimo, o autor de crónicas que escrevia para o Jornal de Letras e outros periódicos. Achei aquelas crónicas deliciosas, pela leveza do estilo, pelo inusitado das situações e pelos toques do humor. Não admira que tenha procurado e coleccionado os livros do Onésimo. Numa minha crónica sobre os Açores não pude deixar de referir uma sua peça de teatro em que coloca anacronicamente Antero de Quental à fala com Vitorino Nemésio (No Seio desse Amado Mar, Salamandra, 1992). A minha Onesimiana cresceu e multiplicou-se, pois eu não perdia cada novo volume. Para meu prazer entraram nela recentemente três acrescentos de tomo: De Marx a Darwin. A desconfiança das ideologias (Gradiva, 2009), um ensaio filosófico inspirado pela biologia evolutiva, O Peso do Hífen. Ensaios sobre a experiência luso-americana (Instituto de Ciências Sociais, 2010), um conjunto de textos sobre os portugueses na América, e Onésimo. Português sem Filtro (Clube do Autor, 2011), uma antologia de textos literários.

Passámos a corresponder-nos por via electrónica, não sei já quando e a que propósito, ficando @migos. Acabei por o conhecer pessoalmente num congresso em Coimbra, tarde demais em relação ao que gostaria que tivesse sido mas, ainda assim, a tempo. Trocámos uns livros. O Onésimo na vida real é tal e qual como nos seus escritos: culto, claro, bom conversador, amante das histórias divertidas. O leitor tem em mãos o mais recente livro dele, com um título não menos original do que os outros, Utopias em dói menor. É uma conversa culta, clara, salpicada da ironia tão própria do autor (à la Feynman). O mérito do livro não é, bem entendido, só do Onésimo, mas do entrevistador, o filósofo João Maurício Brás, que o desafiou para o diálogo, um género com longa tradição filosófica. É a pedido dos autores que escrevo este prefácio: não podia ao Onésimo deixar de retribuir os bons bocados de leitura que lhe sou devedor. Estando, porém, consciente, após ter lido as suas introduções, dos prejuízos que os prefácios podem causar, prometo não demorar.

 Quem não conhecer ainda Onésimo Teotónio Almeida este é um excelente sítio para o fazer. Garanto ao leitor que vai lucrar com o contacto. Ele é um personagem singular: como disse, não é apenas filósofo (ou professor de Filosofia, como ele prefere dizer) e historiador de ciência, mas também um autor de crónicas, contos, peças de teatro, e um crítico literário, especialista em literatura açoriana (seja lá o que isso for: talvez não inclua Antero de Quental, mas inclui decerto Vitorino Nemésio). E consegue combinar todas essas facetas de um modo único. Poder-lhe-ia chamar um polímata ou um homo universalis, se quisesse usar daquelas palavras pomposas que abundam nos prefácios eruditos. A faceta de autor literário, talvez pelo maior prestígio que goza entre nós a literatura, tem injustamente escondido do público as suas facetas do filósofo e do historiador de ciência, que aqui sobressaem. Onésimo estreou-se no ensaio filosófico com a sua tese de doutoramento na Brown sobre a questão da ideologia (nos tempos em que Marx estava bem mais vivo do que hoje!) e, em ligação com essa questão, passou a interessar-se pelas mundividências (worldviews), o tema de um curso que mantém na sua universidade e que lhe tem suscitado sucessivos escritos, dispersos por um número impressionante de sítios. Só recentemente o filósofo ganhou, no palco público, proeminência quando o filósofo (e também escritor) Miguel Real incluiu o Onésimo como último autor, de certo modo o mais contemporâneo, no seu notável volume O Pensamento Português Contemporâneo (1890-2010), publicado pela Imprensa Nacional em 2010. O nosso autor aparece a fechar a «vertente do modernismo», sendo-lhe dado um merecido destaque ao longo de trinta páginas.

O Onésimo, um autor decididamente «moderno», tem, entre outros assuntos, procurado aprofundar o tema da identidade portuguesa. O que é isso de ser português? Sai-nos naturalmente, mas não é fácil de definir. Como ele próprio afirma, só vemos que somos portugueses fora de Portugal: «Nos Açores eu, em criança, fui de S. Miguel, minha ilha natal, fui à Terceira e lá percebi que era micaelense. Na Madeira, senti-me açoriano. Em Lisboa, com os madeirenses éramos todos ilhéus. Fui a Badajoz e senti-me português. Mais tarde, em Paris, senti-me ibérico. Nos Estados Unidos, percebi que era europeu. Na China, senti-me definitivamente ocidental. E sei que, se um dia fosse a Marte, ia sentir-me terrestre.» Só ao longe se vê bem o que é ser-se português. Já o escrevi noutro lado (não foi num prefácio, mas sim numa badana do livro À Espera de Godinho, da autoria de Amadeu Lopes Sabino e três outros estrangeirados em Bruxelas, Bizâncio, 2009): «Portugal desafia as leis da óptica pois se vê melhor ao longe do que ao perto.» E o Onésimo, observando do outro lado do Atlântico o declínio nacional após os Descobrimentos, quer conhecer as respectivas causas na peugada do seu conterrâneo Antero de Quental. Fomos outrora modernos e interessa saber porque deixámos de o ser. Por que é que, como escreveu o poeta Carlos Queiroz, «só fazemos bem/ Torres de Belém»?

Os portugueses são um povo com virtudes e defeitos. Um dos seus defeitos maiores é talvez o défice na capacidade de análise, que é nalguns casos contrabalançado pelo jeito para a síntese rápida, nem sempre bem feita, que é como quem diz para o improviso. O Onésimo privilegia a filosofia analítica, tão ao gosto dos anglo-saxónicos. Numa discussão séria tem, na sua opinião, de se descer ao pormenor, de se expor e escalpelizar os argumentos, um a um. Ora, como é sabido, em Portugal, os argumentos são, muitas vezes, debatidos pela rama, quando o são. Tantas vezes, vezes demais, nem sequer há crítica. Mas, quando a há, não se ouve o outro. Por vezes, ataca-se o autor e não o argumento. O Onésimo, nos seus ensaios, tem sempre alguma coisa para dizer, preocupando-se em estar bem informado e em ser claro. Neste último aspecto difere dos pós-modernos, dos quais ele acha que só ficarão os «pós». Se, para Jacques Derrida, todo o texto contém o extra-texto («il n’y a pas de hors-texte») para o Onésimo tem de haver um texto e um extra-texto. O pós-modernismo difundiu-se entre nós rapidamente talvez por falta da tradição racionalista, de base empírica, uma tradição que poderia ter ficado instalada com a «ciência ao estilo manuelino», isto é, os textos de D. João de Castro e dos seus contemporâneos Pedro Nunes e Garcia de Orta. Mas, para nosso infortúnio, não ficou. Tivemos, com os Conimbricenses, o regresso à escolástica, em vez de termos seguido Francis Bacon, um dos inauguradores da moderna ciência, que, na sua Nova Atlântida, colocou na capa como imagem alegórica a entrada das naus no Atlântico à passagem pelas Portas de Hércules.

 Mas chega de prefácio, pois o leitor deve estar a reclamar nesta altura o discurso directo do Onésimo. Tê-lo-á já a seguir. Melhor do que o registo da sua entrevista, só mesmo o próprio, ao vivo e a cores. O leitor ficará, estou certo, com vontade de conhecer a obra de alguém que se move com igual desenvoltura por tão variados temas filosóficos: a estética, a ética, a justiça, a liberdade, etc. Verificará a manifesta dificuldade do entrevistado em fazer sínteses sobre assuntos dos quais preferia fazer análises. Mas, a isso obrigado pelo entrevistador, faz óptimas sínteses para nosso benefício. A sua defesa da modernidade como lugar da utopia, a utopia que dói menos, fazia falta no pensamento português. E a questão de Portugal, ao qual faltará ser mais moderno, ficará mais nítida para os portugueses interessados nas idiossincrasias nacionais. Esta entrevista permite-nos saber melhor quem somos, o que nos permitirá saber melhor para onde ir. Salvador Dalí aconselhou os jovens pintores: «Não vos preocupeis em ser modernos. É a única coisa que não podeis evitar.» Porque é que evitamos ser modernos? Juntamente com Eduardo Lourenço e António José Saraiva, os dois com obra completa publicada nesta editora, e que abrem a lista de pensadores referidos por Miguel Real no quadro da «emergência de um novo racionalismo», Onésimo Teotónio Almeida é uma voz imprescindível para explicar a modernidade a Portugal e aos portugueses. Escutemo-la.

3 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Onésimo Teotónio Almeida, percalçara a natureza humana. Texto irretocável. Aliás, diga-se da apresentação, do professor Carlos Filhais o selo de altura Gradiva.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Professor Carlos Fiolhais, exactamente.

escritas de mp.b disse...

Tanta gente ilustre e que ainda é viva(felizmente)a que temos que prestar atenção. Imensa gente que é ignorada pelo nosso povo... Mais um nome--- Onésimo Teotónio de Almeida .-

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