sábado, 10 de novembro de 2012

"Neste mundo de instituição, cataloga-se até o coração"


A receita é muito antiga e tem tanto de simples como de eficaz.

São só dois os seus ingredientes: um material e outro psicológico.

Confecciona-se assim...

Empobrecem muitas pessoas. Tira-se-lhes primeiro o trabalho regular e depois a possibilidade de ter qualquer um, mas não se lhe diz isto honestamente, para elas terem, ao princípio, esperança, e por terem ainda esperança vendem os bens mais valiosos para aguentar a vida e depois os que pouco valem. A casa que tentaram segurar, porque a casa é o abrigo, o refúgio, vai de seguida. As que têm filhos pequenos, as que estão doentes... são as que mais frágeis e, desorientadas, aceitam qualquer coisa... ou desistem.

Ao mesmo tempo (tem de ser ao mesmo tempo) e de forma progressivamente acentuada, incute-se-lhes uma paradoxal culpa pelo seu próprio estado de pobreza, estado a que chegaram por não terem sabido disciplinar as sempre ilimitadas necessidades e vontades inerentes à condição humana, por não terem conseguido renunciar às muitas tentações das montras reais e virtuais. Habituaram-se a ter o frigorífico cheio, era só abrir a porta e tirar (isto disseram-me um destes dias).

Em estado de pecado, têm de percorrer o clássico caminho da penitência, têm de sofrer para se purificarem. Nos momentos de alguma lucidez, pressupostos alinhados em cima da mesa, essas pessoas percebem que alguma coisa não bate certa, que aspectos fundamentais são omitidos, distorcidos, mas a repetição faz milagres: o discurso que se sobrepõe a todos os outros é o do indicador estendido, que está em todo o lado, e elas vacilam, admitem... "por minha culpa, por minha tão grande culpa"...

É chegada a hora de fazer emergir a imutável caridade. Mas tem de ser com pujança, concertadamente, para se notar bem, para se agradecer muitíssimo. "O pobre no seu penar, habitua-se a rastejar" e vai pedir a sopa, o pão, o "reforço alimentar" (expressão correctíssima, acabada de inventar) para as suas crianças.

E vemos (temos. é certo, de nos aprimorar para ver) as poucas pessoas que fizeram empobrecer muitas pessoas a destacarem-se, a sair "com muita pena do pobre, coitada[s]". Aliadas ao poder que nos tutela e que, ufanamente, lhe confia dinheiro (das muitas pessoas, naturalmente), distribuem com ponderação o essencial, só o essencial, nada mais do que o essencial: está tudo sob controlo, sabe-se precisamente quantas crianças têm fome (perdão, carências alimentares), pois "neste mundo de instituição, cataloga-se até o coração".

Preciso de mais umas palavras do filósofo José Barata Moura para rematar este texto: "Não vamos brincar à caridadezinha"!

6 comentários:

José Batista disse...

Fiel retrato.
E aos que têm mais lhes será dado.
E aos que pouco têm até esse lhes será tirado.

Porque chegámos aqui?
Quem nos trouxe?
Porque "aceitámos" vir?
Como sair daqui?

Graça Sampaio disse...

Excelente!!! Tive de copiar de tão bom! Obrigada.

casimirosilva disse...

Que belo texto!

fernando caria disse...

...e estou em crer que foram também muito bem sintetizados os elementos característicos que nos permitem saber que se está perante uma grande trama. Ou mesmo conspiração!
Conhecemos os actores, mas desconhecemos o guião e o(s) encenador(es).
Triste, será concerteza, a moral da estória.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Da função exógena do conhecimento. A exemplo da profesora Helena Damião "preciso de mais umas palavras".
Assim, atentem-se ao editor Guilherme Valente da Gradiva, de quando insistira a vos, por escrever! E, escrevam com vigor, com verdade! Característica de vossa abençoada, Língua Portuguesa, Respvblica Portigalliae. Vossa protecção, força e patrocínio. Vossa língua é vossa identidade.

Agostinho disse...

O problema de Portugal está na ignorância que grassa de cima a baixo.
O número de ilusionismo praticado por artistas conhecidos, oferecido durante décadas, deixou a população num estado deplorável de dependência. Esta é a prova real de que as pseudo-elites são afinal ainda os mais "ignorantes". Ou criminosos? Durante esse tempo todo os mágicos arrecadaram gordos cachets. Agora, quando a coisa está preta, o que dizem é "habituaram-se a ter o frigorífico cheio...". De gelo, digo eu.
O povo não deve ir além do caldo verde? Para que lhe serve o frigorífico? Para engordar os administradores da EDP?

Agostinho Jacinto

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