sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Casa António Gião: uma história triste

Post recebido do historiador António Mota de Aguiar:

António Gião nasceu, em 1906, em Reguengos de Monsaraz e aqui passou uma boa parte da sua vida, no palacete que possuía no centro da vila. Já aqui escrevemos sobre ele, sobre o seu saber, sobre as várias universidades portuguesas e europeias por onde passou e sobre a sua poesia. Foi um cientista de saber multifacetado: ao longo da vida escreveu muitos trabalhos científicos, publicados em vários idiomas, e do qual existe (ou existiu) correspondência.

António Gião, faleceu em 1969, e “por escritura lavrada em 11 de Março de 1981, D. Sophie Sipra Gião, viúva do Professor António Gião, doou à Sociedade Portuguesa de Autores, com todo o seu precioso recheio, o prédio urbano (…), doação esta feita com a declarada intenção de “honrar e perpetuar a sua memória” e para que, pondo esse prédio “à disposição de escritores, cientistas e artistas”, nele se constitua “um centro de convívio, de trabalho e de realizações culturais e científicas”, tais como “seminários, conferências, colóquios, recitais, exposições e concertos”. (…) Para tanto, e de acordo com a Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz – sem cuja dedicada colaboração é evidente que o programa não poderia ser cumprido –, está a proceder-se às obras indispensáveis, que permitirão um melhor e mais largo aproveitamento de todas as potencialidades do edifício e respectivo anexo.”

É isto que vem mencionado na pequena brochura “Professor António Gião, evocação da sua vida e obra seguida de uma antologia” editado pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em 1981.

Visitei a Casa António Gião no dia 11 de Abril de 2011, exactamente 30 anos depois. A propriedade tem a forma de um rectângulo: o Palacete separa, por um jardim, o anexo, a casa onde vive o “caseiro”, isto é, o casal que lá vive há vinte anos e se ocupa da limpeza da casa. Entrei na propriedade pelo “anexo”, cujo tecto (?) foi reparado há cerca de 2 meses, porque “uma parte estava a cair”.

Fui logo avisado à entrada que era rigorosamente proibido fazer fotografias dentro da casa.
Quando se entra na propriedade, à direita, está arrumado um “dois cavalos” com carradas de pó em cima. Ao lado um outro pequeno automóvel. Do lado esquerdo capoeiras com galinhas, pombas e um cãozinho simpático. O jardim uma fealdade! Sobem-se umas escadas antes de entrar na casa, por cima, um alpendre (ou varanda?), ameaça cair. A sala, no rés-do-chão, tem na parede afixadas duas placas de mármore comemorativas: a de cima, de 1981, comemorando a doação por parte da viúva de António Gião. A segunda, de 1983, comemorando a visita do General Ramalho Eanes (suponho que como Presidente da República). Abaixo das placas, também fixado na parede, está um pequeno quadro em acrílico, tendo dentro uma poesia de amor, a parte da frente, em francês, por trás, em português. Li rapidamente a poesia em português. Certamente foi fixada ali pela viúva na inauguração da casa, em 1981, lembrando os momentos felizes das suas vidas, e para que o tempo não apagasse os momentos de amor que viveu com o marido.

Resumo o que vi no interior: As paredes da casa têm infiltrações, em particular na cozinha, com um enorme buraco. Algumas partes das madeiras estão fixadas com fita-cola. As carpetes, que foram outrora, penso, Arraiolos, estão esfarrapadas, totalmente corroídas pelo tempo. Os móveis estão desleixados. Está tudo em decadência.

Nos quartos há estantes onde se encontram os trabalhos de António Gião, das suas cartas pessoais, da correspondência com universidades europeias, de trabalhos científicos seus, traduzidos em vários idiomas. Há dezenas de trabalhos do cientista, dezenas de livros de estudo, monografias, dicionários, edições científicas, etc., etc. Nunca foi feita uma selecção e qualificação para fins de consulta bibliotecária dos livros existentes. Estando ali, desleixados como estão, o tempo vai destruindo todo este material. Era bem melhor oferecer estas obras a bibliotecas nacionais interessadas.

Dos muitos trabalhos do cientista, eis três que anotei ao acaso, que realçam a qualidade científica do autor:

- Akademische Verlagsgeselschaft M.B.H., Leipzig : Sur la Prévision Mathématique par une relation générale entre l’espace et le temps, 1932
- Memorial de l’Office National Météorologique de France : La Mécanique différenjtielle des Fronts et du Champ Isallobarique, 1929
- Arquivo do Instituto Gulbenkian de Ciência, vol. V, n.º 2, Centro de Cálculo Científico: On the Wave Continuation of Functions, 1962

Noutro lugar estão centenas de números da revista: Ilustração Portuguesa do final do século XIX e primeiros anos do século XX, revista ABC da mesma época, e outras revistas.

Depois do abandono que vi, já não quis subir ao 1.º andar, aos “quartos”.

Num armário, está a sua correspondência privada (onde andará a sua correspondência com Einstein?) e com instituições académicas, tudo a monte, os seus cadernos escolares, com ditados da sua infância, cursos de habilitações literárias, poesias, agendas privadas, etc. etc., tudo misturado com os seus trabalhos de investigação científica, as suas memórias em vários idiomas. Tudo está ali a monte, num caos. Toda a sua vida está ali naquele armário. Concluo que ao longo dos 30 anos, curiosos meteram ali as mãos e tiraram os documentos para fora para os ler, e foram-nos metendo dentro como calhou, não há outra resposta para aquela desordem.

“Há uns anos atrás veio cá um Professor que esteve a ver os papéis e disse que voltava para pôr tudo em ordem, mas nunca mais voltou”. “De vez em quando vem algum sócio da SPA e fica cá a dormir”. Há anos (ou há uns tempos), houve aqui uma reunião…”, disse-me o caseiro.
Por ali também passaram, em 1998, três alunas da Faculdade de Matemática da Universidade de Évora, escreveram um currículo de António Gião, e deixaram dois exemplares.

O espólio científico e cultural de António Gião está num estado deplorável de desordem, e, ao longo dos 30 anos, devem-se ter perdido muitos documentos. Todo o edifício está em decadência e, dentro de poucos anos, com mais algum inverno rigoroso, ficará em ruínas. Compreendi por que razão é “rigorosamente proibido tirar fotografias dentro de casa”!

Decidi falar com o responsável pela Casa António Gião. Pedi ao caseiro que chamasse o funcionário da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, responsável da Casa António Gião e representante da SPA: a primeira vez mandou dizer que estava a almoçar, a segunda que estava ocupado, que não podia vir – a Câmara fica a uns 200 metros.

Diz a brochura que citei editada em 1981:

“(…) a Casa António Gião – que assim se denominará por expresso desejo da doadora – possui os requisitos essenciais para satisfazer o duplo objectivo que lhe foi assinado: funcionar como lugar de encontro de criadores intelectuais e centro cultural polivalente. Para tanto, e de acordo com a Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz – sem cuja dedicada colaboração é evidente que o programa não poderia ser cumprido -, está a proceder-se às obras indispensáveis, que permitirão um melhor e mais largo aproveitamento de todas as potencialidades do edifício e respectivo anexo. Assim, às actuais instalações destinadas aos autores e convidados da SPA, outros aposentos estão a ser preparados para o mesmo fim, enquanto o anexo vai ser submetido a uma profunda transformação, de modo a que nele possa funcionar uma escola de artes e ofícios, evitando que se dilua e perca a riquíssima tradição do artesanato local, passando os actuais produtores o seu testemunho às gerações seguintes”.

A Casa António Gião está em degradação, quer o interior quer o exterior, não é um Centro Cultural e tudo indica que nunca o foi. Se a intenção, em 1981, da SPA foi de “honrar e perpetuar a sua memória”, a Sociedade Portuguesa de Autores falhou redundantemente, o que ali vi foi o espólio científico, cultural e físico deixado pelo cientista, em acelerada decomposição.

Em vez de “honrar e perpetuar a sua memória”, como, se tinha comprometido fazer, cometeu, ao seu ilustre sócio, um desagravo moral à sua memória (e não só moral, o edifício está em decadência), consentido a destruição do “seu precioso recheio”, como diz a brochura editada em 1981.

António Mota de Aguiar

4 comentários:

RUI AGONIA PEREIRA disse...

Estou profundamente irritado pelo incumprimento dado ao definido para a CASA ANTÓNIO GIÃO que teve a minha reflexão e a do Dr. Levy Baptista que a Madame Gião aceitou e concretizou por escritura.
R. Agonia Pereira( Prof. Jubilado e Ex- Director do Centro de Cálculo Científico do Instituto Gulbenkian de Ciência)

Francisco Vieira disse...

"Dá Deus nozes a quem não tem dentes!" - brocardo antiguinho! Lamenta-se...e indignamo-nos sinceramente! Não pode ser só "migas de espargos com entrecosto"! E logo ali na principal via de Reguengos de Monsaraz que tanto orgulho deveria ter neste património raro! Será incúria ou falta de cultura da SPA! A Câmara Municipal deveria mui justamente intimidar a SPA ... ou expropriar por abandono e incumprimento estatutário! Assim não vale!!!
António Camacho Rosado da Fonseca

Francisco Vieira disse...

Leia-se "intimar", por favor!

Unknown disse...

Boa tarde, sou primo do Antonio Giao, e ainda morei nesse palacio...enfim é uma pena...cumprimentos

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