sábado, 31 de julho de 2010

CAMINHOS NEURONAIS


Nova crónica de António Piedade saída no "Diário de Coimbra":

Caminho adentro um trilho florestal debruado por pinheiros e eucaliptos. As folhas acompanham-me com os versos do poeta andaluz, Manuel Machado: “…caminante no hay camino, se hace el camino al andar”. De facto, só ao caminhar desvendo o fluir do caminho, os seus trilhos efluentes, as suas sendas que ficam inexoráveis para trás.

Caminho à beira-mar com a água salina a ondular a areia em vagas pulsantes. A cada onda, desaparecem os rastos dos meus passos. É como se a água levasse o caminho feito. A cada onda, renova-se o areal horizonte de meus passos futuros, como se uma nova folha se esbranquiçasse para receber, novamente virgem, o traço seguinte.

Caminho ao longo de um axónio imaginário, prolongamento celular nervoso que nasce do corpo neuronal e se espraia até à enseada da sua ligação, ou sinapse, com o neurónio a quem passa o testemunho de uma mensagem que flui. Flui como uma onda salina de potássio e sódio, propulsionada por uma acção potencial de natureza electroquímica. A passagem de testemunho tem cambiantes químicos que modelam a mensagem com neurotransmissores específicos: serotonina e noradrenalina associadas ao “humor”; dopamina ao controlo motor; acetilcolina à aprendizagem e memória; ácido gama-aminobutírico à inibição; glutamato e aspartato à estimulação; et cetera.

A vaga neurotransmissora banha o neurónio pós-sináptico, passo seguinte, e uma nova onda se espoleta e conflui com milhares de outras vindas de tantos outros neurónios, numa raiz dendrítica que encorpa no integrante corpo celular.

E assim, de sinapse em sinapse, passo a passo, a mensagem faz o seu caminho e a via neuronal se estabelece, consequente, numa acção causal de efeitos complexos ainda pouco estabelecidos, porque muitos são os caminhos e muitas as suas intercomunicações em rede.

Constelações neuronais em estruturas cerebrais específicas, delineiam caminhos e destinos ainda por identificar e relacionar com acções e sensações, com pensamentos e palavras.

Alguns peregrinos, como Xim Jin e Rui M. Costa, encontraram em faróis banhados por vagas dopaminérgicas, os contornos iniciais e finais de gestos sequenciais (aqui).

Outros peregrinos, como Vivien Chevaleyre e Steven A. Siegelbaum, percorreram os caminhos definidos por diferentes tipos de neurónios piramidais que se alinham no hipocampo e que se sabiam estarem envolvidos, de alguma forma, no estabelecimento de uma memória espacial essencial à repetição do gesto (aqui). Especificamente, identificaram que neurónios piramidais, do tipo CA2, desempenham um papel que inverte a força das vagas no palco sináptico: “dão” mais ímpeto às mensagens longínquas vindas do córtex e “abafam” as dos seus vizinhos piramidais do tipo CA3, neurónios também do hipocampo.

Um dia, se o sonho tiver natureza neuronal, peço emprestado o verso ao poeta luso António Gedeão e digo que “Eles nem sabem nem sonham, que o sonho comanda à vida” e que é pelo sonho que caminhamos!

11 comentários:

Marta Bellini disse...

Belíssimo!

Anónimo disse...

A VIDA COMANDA O SONHO

Mais do que o sonho a comandar a vida
está minha vontade, o meu querer,
que à sua frente leva de vencida
quanto se oponha à força do meu ser.

É bonito sonhar de olhos abertos
perante a mais banal realidade,
mas é preciso dar os passos certos
para atingir qualquer finalidade.

Venha o sonho dourar em cada dia
meus actos, meus projectos pessoais
como se fossem pura fantasia!

As coisas mais concretas e reais
não devem prescindir da Poesia
que lhes confere a luz dos Ideais!

JOÃO DE CASTRO NUNES

António Piedade disse...

Queiram seguir o seguinte link:
http://www.technologyreview.com/video/index.aspx?id=21175&brightcove=1709866689&iframe=biotech&autoplay=true

e visualizar vias neuronais identificadas pelas mais modernas técnicas de Imagiologia por Ressonância Magnética (IRM). Neste caso, a Imagiologia de Tensores de Difusão, permite identificar as principais, ou melhor, as mais activas vias neuronais. Funciona detectando a difusão de moléculas de água ao longo das vias neuronais activas. Lá está a água, mais uma vez, a desvendar-nos os caminhos...

António Piedade

Anónimo disse...

Em linguagem neuronal, agora entendo a poderosa eficácia da água-benta! JCN

António Piedade disse...

Repare meu Caro Castro Nunes, que passamos quase 40 semanas numa "gravidade" amniótica. Os primeiros gestos aquáticos. Ontológicamente, não vimos do pó: vimos da água.
Abraço,

António Piedade

platero disse...

este senhor deve saber mesmo muito
ah, e se fala bem

dá gosto

Anónimo disse...

Por isso vossemecê, senhor Platero, mudou de arraial, assentando praça aqui. Chegue-se aos bons, meu caro Amigo! JCN

Anónimo disse...

Que grande e científica verdade, Caro Dr. António Piedade! Tenho de reconhecer que, em termos ontológicos, cravou um par de bandarilhas com suprema elegância, sem mãos na rédea. Não é para todos: razão tem Platero ao gabar-lhe o saber com saber dizer! JCN

António Piedade disse...

Agradeço a todos pelas palavras elogiosas que, acreditem, são estímulo para fazer melhor.
Abraço

António Piedade

ana disse...

Deu-me prazer ler o seu artigo porque está muito longe da minha área e consegue agarrar o leitor, sem que este saiba alguma coisa sobre o assunto.
A analogia da árvore com os neurónios é bela. É mais fácil para um leigo ver a ciência desta forma.
Parabéns!

Graciete Rietsch disse...

Que linda é a BIOLOGIA. Este texto científico é tão poético como as poesias do nosso Gedeão, ´Professor de Física e Poeta.
Os meus cumprientos com sincera admiração.

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