quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

"Uma coroa na testa da cidade”: a Biblioteca Geral, passado e futuro


Meu prefácio ao recente livro, ricamente ilustrado, "Tesouros da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra" (Imprensa da Universidade de Coimbra, com coordenação de A. E. Maia do Amaral):

A biblioteca, qualquer biblioteca mas principalmente uma grande biblioteca, é um mundo, um cosmos. O físico Carl Sagan, no seu livro Cosmos, num capítulo significativamente intitulado “A persistência da memória”, escreveu: “Os livros permitem-nos viajar através do tempo, beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarmos e para nos inspirarem a dar a nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana.”

As palavras de Sagan evocam as do filósofo e matemático René Descartes: “A leitura de todos os livros bons é como uma conversa com as pessoas mais sérias dos séculos passados que deles foram autores.” Pois as bibliotecas são esses sítios únicos e extraordinários onde, para nosso enriquecimento, podemos conversar em qualquer altura com pessoas que desconhecemos mas das quais podemos ficar amigos. Elas encerram verdadeiros tesouros por várias razões: porque os bons amigos são tesouros valiosos, que devemos saber guardar; e porque a voz deles se faz ouvir através de conjuntos de folhas manuscritas ou impressas, que são muitas vezes objectos eles próprios valiosos, quer pela antiguidade quer pela arte que exibem.

A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra guarda tesouros que nos trazem a memória de cinco séculos do tempo português e universal. Permanece algo nebulosa a sua origem, mas decerto desde que há Estudo Geral em Portugal que há um sítio para os livros necessários ao estudo (o rei D. Dinis assinou a bula que funda a universidade portuguesa a 1 de Março de 1290). A origem da biblioteca da universidade pode ser datada no ano de 1512, pelo que em breve deverão ser comemorados os quinhentos anos da biblioteca (nessa altura ainda não era geral). Em 1545 já existia biblioteca pois o cronista da Índia Fernão Lopes de Castanheda foi nomeado “guarda do cartório e da livraria” da Universidade de Coimbra. Ele pertence, portanto, à galeria dos grandes professores bibliotecários que foram, depois dele André, de Avelar, no século XVII, António Ribeiro dos Santos, no século XVIII, Augusto Simões de Castro, no século XIX, e, para nomear alguns nomes do século XX, Joaquim de Carvalho, João da Providência e Costa, Damião Peres, Lopes de Almeida, Guilherme Braga da Cruz, Luís de Albuquerque e Aníbal Pinto de Castro.

De início existiu apenas uma biblioteca, mas em breve, com a multiplicação dos espaços de ensino, das disciplinas e também das obras, as bibliotecas da Universidade de Coimbra cresceram e multiplicaram-se. Hoje são mais de oitenta, embora unidas numa rede, gerida pelo Serviço Integrado de Bibliotecas da Universidade de Coimbra, que se quer cada vez mais coerente. Porém, embora de início não tivesse esse nome, nunca deixou de existir uma biblioteca central ou geral, que funcionou no Paço das Escolas. A partir de 1728, ela passou a funcionar na Casa da Livraria que o rei D. João V mandou erguer ao lado do Paço. Hoje essa Casa é a Biblioteca Joanina, verdadeiro ex-líbris da universidade, bem visível no alto da colina universitária (uma “coroa na testa da cidade” [1]) e que é visitada anualmente por milhares de pessoas de todo o mundo. Com o crescimento e evolução da universidade, a Biblioteca Geral passou no século XX para um edifício do Estado Novo, concluído em 1956, agora do lado de fora do Pátio das Escolas, mas de arquitectura não menos monumental. Apesar do seu maior tamanho, esse edifício está hoje próximo da saturação, impondo-se a ocupação de outra casa, com acrescida funcionalidade. Se a Biblioteca Geral, com mais de um milhão de volumes, é a segunda biblioteca nacional, ela e o conjunto das restantes bibliotecas de Coimbra, com o total de cerca de dois milhões de volumes, formam uma das maiores bibliotecas do país, rivalizando com a Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa.

Este livro mostra alguns dos muitos tesouros que a Biblioteca Geral alberga. Outros podiam ser encontrados quer na Biblioteca Geral quer nas bibliotecas das várias faculdades, departamentos e institutos. É obrigatório referir a colecção de três mil e quinhentos manuscritos, que por sua própria natureza são únicos e onde pontua a colecção de manuscritos autógrafos de Almeida Garrett, os livros do fundo antigo guardados em parte na casa-forte, entre os quais sobressai uma Bíblia da escola de Gutenberg e uma primeira edição d’Os Lusíadas, a secção de música, que engloba boa parte dos tesouros musicais do Mosteiro de Santa Cruz (como é sabido, o bibliotecário Alexandre Herculano levou para o Porto a maior parte da famosa Livraria de Santa Cruz). É de referir a Sala do Visconde, com a colecção de folhetos raros do tempo da Restauração, a Sala Oliveira Martins, com o espólio bibliográfico do historiador e escritor da “geração de 70” e a Sala de São Pedro, na qual a rica colecção de livros do Colégio de São Pedro (hoje edifício da Reitoria e da Faculdade de Direito) se conserva nas suas estantes de origem e onde tantas e tão notáveis exposições já se realizaram. Mas deve-se ainda referir as colecções doadas por notáveis benfeitores, como os ex-directores Lopes de Almeida e Luís de Albuquerque. E colecções ainda por tratar como a Biblioteca do Instituto de Coimbra, uma academia que teve origem no Colégio de São Paulo Apóstolo, sito no espaço onde hoje é a Biblioteca Geral.

Beneficiária dos favores reais e do Depósito Legal desde os tempos da República, hoje na Biblioteca Geral pode o leitor encontrar de tudo, entre monografias e todo o tipo de publicações periódicas. Uma pequena parte desse vasto espólio é produção própria pois a biblioteca, fechada a imprensa da universidade no tempo do Estado Novo, foi ela própria uma grande editora, publicando entre outras séries a Acta Universitas Conimbrigensis, a Revista da Universidade de Coimbra e o Boletim Bibliográfico da Universidade de Coimbra.

Trata-se de uma biblioteca pública, que tem as suas portas abertas de manhã à noite não só aos estudantes, docentes e investigadores, mas também aos cidadãos em geral, que queiram fazer amigos nos livros que a biblioteca conserva. A biblioteca de hoje — e ainda mais a do futuro — é digital. Com as novas tecnologias da informação e da comunicação deram-se nos últimos anos passos decisivos para construir a biblioteca moderna. O catálogo passou a ser comum a todas as bibliotecas universitárias de Coimbra, estando acessível na Internet. Também passou a ser comum o regulamento de empréstimo das obras e o regulamento de empréstimo interbibliotecas. Criou-se uma Biblioteca Digital da Universidade de Coimbra, em colaboração estreita e profícua com outras bibliotecas da rede universitária. As modernas tecnologias são, de resto, a melhor aliada do livro antigo: com a digitalização e a afixação em rede, elas permitem uma melhor memória dos escritos que os antepassados nos deixaram. Criou-se também um repositório das teses e produção científica da Universidade de Coimbra, chamada Estudo Geral e que é verdadeiramente geral por estar acessível a todos através da Internet. As mesmas tecnologias são também aliadas do livro moderno: permite que muitos livros modernos sejam puramente virtuais, tornando-se por isso mais acessíveis. A Internet é a moderna Biblioteca de Babel, a biblioteca prodigiosa que Jorge Luís Borges tão bem descreveu. Não tem paredes, sendo transparente de qualquer sítio do mundo. Oferece a informação de uma maneira rápida e cómoda. O novo não é de modo nenhum inimigo do velho, antes o valoriza e complementa.

De tudo isto se dá conta pormenorizada neste livro, através dos textos de António Filipe Pimentel, sobre a arquitectura e a arte dos dois edifícios, António Eugénio Maia do Amaral sobre as bibliotecas eruditas e espólios literários e científicos, num capítulo, e marcas bibliográficas, noutro capítulo de Saul Gomes sobre os manuscritos iluminados, Maria da Graça Pericão sobre a tipografia quatrocentista e quinhentista, Flávio Pinho sobre os documentos musicais, de Iuliana Gonçalves, sobre a imprensa periódica portuguesa, de Alexandre Ramires sobre a fotografia antiga, e de mim próprio sobre o Instituto de Coimbra e sobre a rede de bibliotecas da universidade. O livro valeria, porém, muito menos sem a arte do fotógrafo Paulo Mendes, que, com grande cuidado e rigor, fixou aspectos e obras de uma maneira que será por vezes surpreendente. E seria impossível sem a competente coordenação de António Eugénio Maia do Amaral, Director Adjunto da Biblioteca. E sem o cuidado trabalho de edição numa primeira fase da INAPA e depois da Imprensa da Universidade de Coimbra, dirigida por João Gouveia Monteiro. A todos o muito obrigado da Biblioteca da Universidade por esta valiosa colaboração.

Carl Sagan acrescentou à frase citada no início: “As bibliotecas públicas dependem de contribuições voluntárias. Considero que a saúde da nossa civilização, a profundidade da percepção que temos das bases de apoio à nossa cultura e o nosso cuidado relativamente ao futuro podem ser medidos pelo tipo de apoio que damos às nossas bibliotecas”. Espero que com esta bela edição os tesouros da Biblioteca Geral fiquem conhecidos de todos. Espero que esses tesouros possam ser desfrutados por quem se queira tornar amigo deles. Os livros e documentos estão na biblioteca ou na Internet, prontos a fazer novos amigos. E espero que a Biblioteca Geral mereça maior apoio por parte de todos, para bem da nossa civilização e da nossa cultura.

NOTA:
[1] - A expressão consta na inscrição sobre a porta de entrada da Biblioteca Joanina: HANC AUGUSTA DEDIT LIBRIS COLLIMBRIA SEDEM, UT CAPUT EXORNET BIBLIOTHECA SUUM, que se pode traduzir “tal sede Coimbra Augusta deu aos livros, que a biblioteca lhe coroa a testa (cabeça, ou fronte)”.

5 comentários:

Anónimo disse...

Formosa metáfora a repor o nome da cidade que termitiu a sua representação heráldica pela serpente, como um dia provarei. JCN

Anónimo disse...

Corrijo a gralha "termitiu" por "permitiu". Acontece. JCN

Anónimo disse...

A SERPE DO BRASÃO

Ao Prof. A. Carvalho Homem

Por se tratar de assunto cativante,
acaso, Professor, sabe a razão
por que Coimbra tem no seu brasão
uma serpente ou cobra rastejante?

Longe de pretender ser petulante
ou de querer armar-me em sabichão,
um dia lho direi na presunção
de se tratar de um símbolo falante.

Será questão de o encontrar um dia
para lhe expor a minha teoria
que nada tem de oculto ou transcendente.

As coisas simpçes são frequentemente
as que por uma espécie de fobia
menos acabam por nos vir à mente!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

A SERPE

Tendo por símbolo a serpente alada,
como aliás se vê no seu brasão,
a doutoral Coimbra laureada
tem um forte poder de seduçãp.

Talvez que a sua denominação,
na mais antiga forma registada,
isto é, Colímbria, tenha relação
com a serpente, assim pronunciada.

Se for como suponho quase ao certo,
no seu escudo, que é um livro aberto,
seria a serpe um símbolo falante.

Toda a gente aprendeu, quando estudante,
que sem querer Adão

Anónimo disse...

Por ter saído mutilado, repito o último terceto, a saber:

Toda a gente aprendeu, quando estudante,
que sem querer Adão perdeu o siso
porque ela o seduziu... no paraíso!

JCN

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