quinta-feira, 28 de junho de 2007

ANTÓNIO ANICETO MONTEIRO OU A MATEMÁTICA EXILADA

Recensão de uma fotobiografia que desenvolve nota anterior neste blog (para mais informações sobre A.A. Monteiro ver aqui ):

O nosso século XX não foi um tempo áureo da ciência. A biografia do matemático António Aniceto Monteiro, nascido em 1907 na antiga Mossâmedes (Angola), mostra bem as dificuldades que os poucos cientistas portugueses viveram nesse tempo. Monteiro teve, em 1945, de se exilar para o Brasil. Daí, devido a perseguição por parte da Embaixada de Portugal (como era longo o braço perseguidor!) teve de se transferir para a Argentina onde viveu na maior parte da da sua vida. Já depois da Revolução de 1974 esteve algum tempo em Portugal para depois voltar para a Argentina, onde veio a falecer em 1980.

Comemoraram-se por isso recentemente os cem anos do seu nascimento. E a Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) publicou uma bem documentada fotobiografia, com textos em português, espanhol e inglês sobre o seu fundador. Monteiro foi, de facto, um dos criadores daquela sociedade em 1940, tendo sido escolhido por unanimidade como seu primeiro secretário-geral. A abrir o livro "António Aniceto Monteiro. Uma fotobiografia a várias vozes. Una fotobiografía a varias voces" escreve o actual presidente daquela sociedade, o matemático Nuno Crato, numa nota em conjunto com Catarina Santa-Clara (responsável pelas comemorações do referido centenário):

"A SPM foi fundada graças aos esforços concertados desta geração [a geração de António Monteiro]. Mas houve nela um homem que pela sua energia, visão e persistência se salientou entre os demais, um homem que em 1937 esteve presente na criação da Portugaliae Mathematica , em 1939 no lançamento da Gazeta de Matemática e em 1940 na fundação da sociedade. Um homem que em todos nestes momentos, tal como noutros, percebeu sempre que a criação de um movimento matemático moderno implicava a internacionalização da investigação, a modernização do ensino, o incremento da divulgação científica e a atracção dos jovens para a matemática".

Além de um grande matemático – a qualidade da sua obra é certificada pelo facto de em 2006 no Congresso Internacional de Matemática em Madrid (a maior reunião de matemáticos do mundo) ter sido lançado a obra em oito volumes “The works of António A. Monteiro”, com versão em CD/DVD – António Monteiro foi um grande impulsionador da matemática em Portugal. Deixou obra: não só publicações como discípulos e instituições! A Portugaliae Mathematica, revista para trabalhos de investigação, ainda hoje se publica. A Gazeta de Matemática, revista para trabalhos pedagógicos e de divulgação, também (acaba de me chegar às mãos o último número, que é também o último que sai sob a direcção de Graciano de Oliveira, sendo o próximo director Jorge Buescu). E a SPM aí está, mais activa do que nunca, com numerosas intervenções, entre as quais se destacam as Olimpíadas de Matemática, uma competição juvenil de resolução de problemas de matemática. Se a ciência matemática em Portugal não foi brilhante, imagine-se o que não teria sido sem a visão esclarecida e a acção pioneira de António Monteiro...

Mas em que circunstâncias António Monteiro foi obrigado a exilar-se? Convém antes contar como foi a sua formação. Nasceu em Angola porque o seu pai era militar e estava aí colocado. Mas Monteiro ficou órfão aos oito anos e a sua mãe trouxe-o para Lisboa, tendo-o colocado no Colégio Militar. Ele é pois um dos mais famosos “meninos da Luz” de que aquela instituição se orgulha. Entre 1925 e 1930 faz o curso superior na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (ainda antes de terminar o curso casa-se com Lídia Torres, depois Monteiro, de quem teve dois filhos, e que o acompanharia no resto da sua vida – a fotobiografia mostra imagens desde o namoro até à festa dos 50 anos de casados). Logo depois de terminado o curso e com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura faz trabalhos de doutoramento em Paris, na Sorbonne, sob a direcção de Maurice Fréchet. Está em Paris entre 1931 e 1936.




A seguir é o regresso a Portugal e todo o dinamismo que Nuno Crato e Catarina Santa-Clara sumariam. Não dizem tudo na sua nota, mas o livro diz: logo em 1936 Monteiro funda em Lisboa, com António da Silveira e Manuel Valadares, o Núcleo de Matemática, Física e Química, procurando implantar uma cultura de investigação em ciências exactas. Recebe passados dois anos o Prémio Artur Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa, inicia em Lisboa o Seminário de Análise Geral e o Centro de Estudos Matemáticos e, em 1943 funda, com Ruy Luís Gomes e Mira Fernandes, a Junta de Investigação Matemática. Foi, em tempo de guerra, uma guerra à passividade nacional na área das ciências!

O extraordinário é que, apesar do seu evidente mérito, o jovem matemático não encontra emprego numa escola superior. Entre 1938 e 1943 ensinou sempre sem remuneração regular, ganhando a vida com explicações particulares e trabalhando num catálogo bibliográfico no Instituto de Alta Cultura. O que impedia a transmissão do seu saber nas escolas públicas? Pois o sábio não quis assinar um papel de fidelidade ao Estado Novo, que era indispensável para se ser funcionário público. O seu amigo Armando Girão conta na fotobiografia a inteligente resposta de Monteiro:

Perante a teimosia do Aniceto perguntei-lhe por fim se ele afinal era comunista e por isso não assinava o papel? – E logo o Aniceto retorquiu: - Não sou comunista nem acredito que o venha a sê-lo – mas a declaração diz que “não sou nem serei...”, e não aceito limitações à minha inteligência!” O destino inevitável era o exílio. Com ele era também a matemática portuguesa que se exilava. Numa carta datado do Porto em 1944, António Monteiro (que esteve no Porto cerca de um ano em 1943 a dar seminários a convite da Junta de Investigação Matemática) escreve ao físico Guido Beck (um dos físicos judeus que passou meteoricamente por Portugal durante a Segunda Guerra):

“Estou-lhe muito reconhecido. É absolutamente necessário que eu consiga sair deste país, onde já não posso viver. Fiz preparativos para sair do meu país para sempre”.

A cátedra de Análise Superior no Rio de Janeiro foi-lhe concedida graças à recomendação não só de Guido Beck, mas também dos já na altura famosíssimos Albert Einstein e John von Neumann. No Rio Monteiro não pára o seu frenesim científico: participa na fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.

Não lhe tendo sido renovado o contrato, por razões políticas, vai para a Universidade Nacional de Cuyo, San Juan, Argentina. Sempre muito activo, é convidado em 1956 para professor na nova Universidade Nacional del Sur (Bahía Branca), tendo recusado convites similares nas Universidades de Buenos Aires e de Santiago do Chile. Aí revelou mais uma vez os seus dotes de organizador, que acresciam aos seus talentos de cientista. A convite do seu amigo, Ruy Luís Gomes, outro matemático perseguido em Portugal (tal como Bento de Jesus Caraça), foi professor em Bahía Branca entre 1958 e 1961. Em 1975 Monteiro jubila-se mas, espantosamente, o reitor, invocando a lei antiterrorista então em vigor na Argentina, proíbe a sua entrada na Universidade. Só em 1977 Monteiro volta a Portugal, tendo sido contratado pelo Instituto Nacional de Investigação Científica e distinguido com o Prémio Gulbenkian de Ciência e Tecnologia. Regressado à Argentina, morre em Bahía Branca.

O presente livro, com uma óptima qualidade gráfica, embora não seja ainda uma biografia definitiva, é uma fonte preciosa. Nele vemos um retrato a lápis que o matemático fez da sua esposa em 1931 e lemos alguns poemas que escreveu em 1959. Um deles intitula-se “Saudade” e dele transcrevo uma quadra que resume a sua vida: “Vejo os amigos ausentes / as lutas os sofrimentos / Vejo as esperanças perdidas / e cem vezes renascidas”.

- Jorge Rezende, Luiz Monteiro e Elza Amaral (coordenadores), “António Aniceto Monteiro: Uma fotobiografia a várias vozes. Una fotobiografía a varias voces". Sociedade Portuguesa de Matemática, Lisboa, 2007.

1 comentário:

Carlos Fiolhais disse...

Eu admiro muito a precisão dos matemáticos! Assim emendei neste artigo algumas imprecisões que me foram indicadas pelo coordenador Jorge Rezende. Muito obrigado!
Carlos Fiolhais

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