É bem conhecido que Camilo Castelo Branco (1825-1890), o grande escritor português (muito ligado ao Norte, apesar de ter nascido em Lisboa) de quem agora celebramos o duplo centenário do nascimento, ficou progressivamente cego, tendo-se suicidado, na sua casa de São Miguel de Seide, em Vila Nova de Famalicão, devido, pelo menos em parte, à sua irreversível deficiência visual.
Camilo está na boa companhia de outros escritores parcial ou totalmente cegos. Para começar, o lendário Homero, o poeta grego da Ilíada e da Odisseia, que era alegadamente cego. Depois, Luís de Camões, o autor de Os Lusíadas (1572), de quem festejamos o quinto centenário, que perdeu um olho numa peleja no Norte de Africa; John Milton, o poeta inglês do Paraíso Perdido (1667), que cegou totalmente na maturidade; e António Feliciano de Castilho, que espoletou em 1865 a polémica da Questão Coimbra, quase completamente cego desde a infância. Mais próximo de nós, James Joyce, o escritor irlandês de Ulisses (1920) e Aldous Huxley, o escritor inglês do Admirável Mundo Novo (1932), os dois praticamente cegos. Quase na actualidade, o escritor argentino Jorge Luís Borges, autor de Ficções (1944), que ficou totalmente cego aos 55 anos sem por isso deixar de escrever.
Por outro lado, são inúmeras as obras literárias que tratam de casos de cegueira, só para dar três exemplos da literatura portuguesa; Alexandre Herculano, o autor da novela A Abóbada, (1861) que conta a história de Mestre Afonso Domingues, o arquitecto cego da Mosteiro da Batalha; o inglês Herbert George Wells, o autor de O País dos Cegos (1911); e o nosso prémio Nobel José Saramago, autor do Ensaio sobre a Cegueira (1955), tal como o anterior um romance utópico baseado na cegueira. O próprio Camilo foi o autor do conto «O Cego de Landins», inserto nas Novelas do Minho (1877). que trata a vida do cego António José Pinto Monteiro, um emigrante do Brasil que regressa â pátria, e de um livro, O Olho de Vidro (1866), que mistura realidade e ficção a propósito do médico oftalmologista Brás Luís de Abreu, autor de Portugal Médico (1726).
A 28 de Abril de 1866, Camilo, que em jovem tinha começado a estudar medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto (matrícula em 1844), mas que abandonou rapidamente o curso. confessou, em carta ao médico José Barbosa e Silva, a sua doença ocular: «Foi muito grave o prognóstico da minha doença de olhos; mas hoje está averiguado que é efeito de venéreo inveterado. Sofro há quatro meses de uma diplopia (visão dupla). É horrível para quem não tem outra distracção além da leitura. Tarde será o meu restabelecimento.»
A cegueira de Camilo tem sido alvo de vários estudos. A sua causa é conhecida: padeceu de neurosífilis, doença que afecta o sistema nervoso central e que tem outras consequências físicas para além da perda de visão. Os primeiros sintomas de Camilo foram a diplopia e nictaria (deficiência de visão nocturna). Apesar de ter recorrido a vários médicos, o seu estado foi-se progressivamente deteriorando, até que se viu envolto na mais completa escuridão. Foi já nessa situação que escreveu ao médico oftalmologista de Aveiro, Edmundo de Magalhães Machado, começando assim: «Ilmo. e Exmo. Sr., sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego. (…)» O médico visitou-o em São Miguel de Seide, tenho-lhe recomendado descanso numas termas antes de se avançar com qualquer outra coisa. Foi quando Ana Plácido, a mulher de Camilo (o seu «amor de perdição»), conduzia o Dr. Magalhães Machado à porta de casa que soou um tiro, disparado pelo escritor contra si próprio, que foi fatal. Além da cegueira afligia-o situação do seu filho Jorge, que sofria de uma grave doença mental e que, por isso, estava num asilo de alienados.
Os médicos, ou mais em geral os estudiosos, tèm-se interessado pela doença oftalmológica de Camilo, havendo por isso um rol de obras sobre a relação entre Camilo e a medicina, enfatizando os seus olhos. Elenco-as na lista bibliográfica, por ordem cronológica de publicação. Não são fáceis de encontrar, mas é para isso que servem as bibliotecas e os alfarrabistas. Relevo a primeira por ser de um lente de Medicina da Universidade do Porto de uma época mais próxima da do escritor.
Pesar de cego, Camilo não deixou de descrever o mundo com acuidade. O Padre António Vieira, que via bem, disse sobre a cegueira, num dos seus sermões, uma frase que se lhe pode aplicar: «Bem-aventurados os cegos, porque estais livres de ver a cara ao mundo, e tantas falsidades e erros, como nele se veem!»
Referências:
- Lemos, Maximiano. Camilo e os médicos: com novos elementos para a biografia do grande escritor. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1920. Reedições, com prefácio de João de Araújo Correia, Porto: Editorial Inova, 1974, e Modo de Ler, 2012.
- Costa Filho, Gomes da. Porque Cegou Camilo? Estudo retrospetivo da cegueira do mártir de Miguel de Seide, Poços de Caldas (Brasil), 1950. 2.ª ed., a 1.ª em Portugal: Porto: Livraria Latina Editora, 1955.
- Ribeiro, Rufino. A cegueira de Camilo e a miopia de um médico, ed. autor, Porto: Tipografia Marca, 1970; 2.ª ed., revista e aumentada, ed. autor, Vila Nova de Gaia, 1972.
- Ribeiro, Rufino. A cegueira de Camilo: pequeno dossier de depoimentos clínicos de grandes mestres da oftalmologia, ed. autor, Porto, 1971.
- Ribeiro, Rufino. Camilo e a tragédia dos seus olhos, ed. autor, Vila Nova de Gaia: Tipografia Rocha, 1972.
- Pereira, Carlos Renato Gonçalves- «A cegueira de Camilo Castelo Branco», Porto: Coopertipo, 1979, Sep. de O Médico, 92, e Acção Médica, ano 52, n.º 1 (Mar. 1988), pp. 39-49